O Salmo 137 é uma das mais intensas expressões de lamento e dor da Bíblia. Ele não possui título ou autor conhecido, mas claramente se refere ao período do exílio babilônico, que começou em 586 a.C., quando Nabucodonosor invadiu Jerusalém, destruiu o templo e levou cativo o povo de Judá. O salmo foi provavelmente escrito por um dos exilados que sobreviveu ao trauma da destruição da cidade santa e agora vive à margem dos rios da Babilônia, lamentando o passado e ansiando por justiça.
Esse salmo representa um registro emocional, profundamente pessoal, da crise espiritual enfrentada por um povo que, além de ter perdido sua terra, seu templo e sua liberdade, também se viu forçado a reavaliar sua fé longe da presença visível de Deus em Sião. Como observa Hernandes Dias Lopes, “o salmo é um retrato do coração sangrando de dor dos exilados, que perderam tudo, menos a fé” (LOPES, 2022, p. 1469).
O pano de fundo inclui também a hostilidade de Edom, que comemorou a queda de Jerusalém, e a brutalidade da Babilônia, que destruiu tudo o que era sagrado ao povo judeu. Não é à toa que o salmista encerra o poema com palavras duras e imprecatórias, pedindo que Deus faça justiça. Esse é um salmo que fala de saudade, lealdade e, sobretudo, justiça divina.
1. O lamento junto aos rios da Babilônia (Sl 137:1–4)
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“Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião.” (v. 1)
A cena é melancólica: à beira dos rios Eufrates e Tigre, os exilados se sentam e choram. Eles não estão simplesmente tristes — estão quebrantados. Como alguém que perdeu tudo e se lembra da vida que já teve. O verbo “sentar” sugere abatimento contínuo. Segundo Calvino, “a expressão ‘ali nos sentamos’ coloca o leitor dentro da cena e indica um luto prolongado, como quem está espiritualmente sepultado” (CALVINO, 2009, p. 464).
As “harpas nos salgueiros” (v. 2) são símbolos daquilo que foi deixado para trás. Instrumentos de adoração foram pendurados porque não havia mais motivo para cantar. John H. Walton explica que o salgueiro era comum nas margens dos rios da Babilônia e tinha galhos baixos, o que facilitava pendurar objetos (WALTON et al., 2018, p. 722). Não era apenas uma ação prática, mas simbólica: a música foi silenciada pela dor.
O que agrava ainda mais o sofrimento é a zombaria dos inimigos: “Cantem para nós uma das canções de Sião!” (v. 3). Os babilônios exigiam entretenimento, como se as músicas de adoração pudessem virar espetáculo. O salmista responde: “Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?” (v. 4). Para ele, cantar ao Senhor fora do templo e para diversão dos ímpios seria uma profanação. Como afirma Hernandes Dias Lopes, “é melhor o silêncio reverente do que o louvor profanado” (LOPES, 2022, p. 1471).
Esse trecho me faz refletir sobre como muitas vezes queremos manter o louvor mesmo quando o coração está em ruínas. O salmista nos ensina que Deus valoriza a sinceridade. Às vezes, o silêncio é a adoração mais fiel.
2. A fidelidade à memória de Jerusalém (Sl 137:5–6)
“Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que a minha mão direita definhe!” (v. 5)
Mesmo longe da terra, o salmista reafirma sua fidelidade. Ele faz um voto solene: se esquecer Jerusalém, que perca sua habilidade de tocar e de cantar. A mão direita era essencial para o músico e a língua para o cantor. Esse juramento mostra que a saudade não era apenas emocional, mas espiritual. Jerusalém simbolizava a presença de Deus. Esquecê-la seria como renunciar à fé.
Calvino observa que “os fiéis, mesmo sofrendo pessoalmente, deveriam se importar ainda mais com as calamidades que atingiram a Igreja” (CALVINO, 2009, p. 467). Jerusalém era o centro da vida religiosa, o lugar do templo, do sacrifício e da comunhão com Deus.
Essa fidelidade me inspira. O salmista não está dizendo apenas “sinto saudades”, mas “minha maior alegria depende do retorno de Jerusalém”. Quando penso na minha caminhada cristã, percebo que também preciso fazer da presença de Deus minha prioridade. Como diz Mateus 6:33, devemos buscar primeiro o Reino.
3. O clamor por justiça contra Edom e Babilônia (Sl 137:7–9)
“Lembra-te, Senhor, dos edomitas e do que fizeram quando Jerusalém foi destruída…” (v. 7)
Nos últimos versículos, o tom muda para indignação. O salmista clama por justiça, e não por vingança pessoal. Ele recorda que Edom, descendente de Esaú, agiu com crueldade quando Jerusalém caiu. A profecia de Obadias condena duramente essa atitude (Ob 10–14). Segundo Walton, “a relação entre Edom e Judá era histórica e familiar, mas marcada por traições” (WALTON et al., 2018, p. 723).
O versículo 8 fala da “filha da Babilônia”, destinada à destruição. A expressão indica a totalidade da cidade, agora prestes a cair sob o juízo divino. O salmista afirma: “Feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez.” (v. 8). Isso reflete a antiga lei da retribuição: “olho por olho, dente por dente” (Dt 19:21). Ele não está clamando por revanche emocional, mas por justiça proporcional.
A expressão mais chocante vem no versículo 9: “Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha!” À luz do evangelho, essas palavras parecem inconciliáveis. Mas precisamos lembrar do contexto histórico. Derek Kidner explica que “esmagar os filhos contra a pedra” era uma prática comum em guerras da Antiguidade, inclusive usada pelos próprios babilônios contra os judeus (KIDNER apud LOPES, 2022, p. 1476).
O salmista deseja que Deus faça justiça. E, de fato, Babilônia foi destruída em 539 a.C. pelos medos e persas. Charles Swindoll relata que a cidade se tornou um deserto, como predito por Jeremias (Jr 25:12) (LOPES, 2022, p. 1477).
Essa seção me lembra que Deus é justo. Ele ouve o clamor dos oprimidos e não deixará a impunidade reinar. Ainda hoje, onde houver opressão e injustiça, Deus se levanta para julgar.
Cumprimento das profecias
O Salmo 137 é fortemente escatológico. Ele clama por justiça, mas também aponta para a restauração futura. A destruição da Babilônia predita pelo salmista se cumpriu literalmente com a chegada do Império Medo-Persa.
Além disso, a figura de “Babilônia” é retomada no Novo Testamento como símbolo do sistema mundano, opressor e idólatra, inimigo do povo de Deus. Em Apocalipse 18, lemos sobre a queda da “grande Babilônia”. Já no capítulo 19, a vitória definitiva do Cordeiro é celebrada com júbilo (Apocalipse 19:1–4).
A esperança final do salmista — que a injustiça tenha fim — se cumpre plenamente em Jesus. Ele não apenas perdoa, mas também julgará com justiça. Como diz Romanos 2:6, “Deus retribuirá a cada um conforme o seu procedimento.”
Significado dos nomes e simbolismos
- Sião – Refere-se a Jerusalém, símbolo da presença de Deus e da comunhão com Ele.
- Babilônia – Representa a opressão, o exílio e o sistema contrário a Deus. No NT, é símbolo do mundo sem Deus.
- Edom – Nação-irmã de Israel, mas que agiu como inimiga. Representa a traição e a indiferença diante do sofrimento alheio.
- Harpas nos salgueiros – Representam o fim da alegria, a suspensão da adoração e a memória dolorosa do passado.
- Despedaçar os filhos na rocha – Simboliza o clamor por justiça proporcional, num mundo em que a guerra era brutal e sem limites.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 137
- A saudade espiritual é legítima – É normal sentir dor ao se afastar de Deus ou de um tempo de comunhão mais intenso. O salmista nos ensina a lamentar com fé.
- A adoração deve ser sincera – Melhor o silêncio respeitoso do que um louvor superficial. Adorar a Deus exige reverência.
- Fidelidade em meio ao exílio – Mesmo longe do templo, o salmista não se esquece de Jerusalém. Isso nos desafia a permanecer fiéis mesmo em tempos difíceis.
- A justiça pertence ao Senhor – O salmo termina com um clamor por justiça. Em vez de buscar vingança pessoal, devemos entregar tudo nas mãos de Deus.
- Jesus é a esperança final – Só em Cristo a justiça e a misericórdia se encontram. Ele venceu a “Babilônia” e nos dá acesso à Jerusalém celestial (Apocalipse 21).
Conclusão
O Salmo 137 é um dos textos mais impactantes do Saltério. Ele nos mostra a dor real do exílio, a saudade da presença de Deus e a esperança por justiça. Ao mesmo tempo, é um convite à fidelidade, mesmo quando tudo parece perdido. O salmista nos ensina que é possível lamentar e adorar, chorar e crer, esperar e confiar. A Babilônia caiu. Jerusalém foi restaurada. Deus cumpriu sua palavra. E Ele continua fiel hoje, mesmo quando ainda estamos à margem dos nossos próprios “rios da Babilônia”.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 463–472.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1469–1477.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 722–723.