O Salmo 140 é uma oração de Davi, marcada por angústia e confiança. O salmista clama por livramento diante de inimigos astutos e violentos. Embora o salmo não forneça um cenário explícito, muitos estudiosos associam sua composição ao período em que Davi foi perseguido por Saul e seus aliados, como Doegue e os zifeus (1Sm 22–24). É um tempo de tensão constante, onde a maldade não é apenas aberta, mas também oculta em intrigas, calúnias e armadilhas sorrateiras.
Do ponto de vista teológico, o salmo se insere numa tradição profunda de oração imprecatória, ou seja, orações em que o fiel clama por justiça e retribuição contra os ímpios. Embora esse tipo de oração pareça duro, ela expressa a total confiança do salmista em Deus como juiz justo. Davi não busca vingança com as próprias mãos; ele entrega sua causa ao Senhor.
Como observa Hernandes Dias Lopes, “Davi retrata com cores vivas a perseguição insidiosa e também em campo aberto que sofreu dos homens perversos” (LOPES, 2022, p. 1505). E Calvino reforça que “Davi censura o rancor e a perfídia dos inimigos não por vingança pessoal, mas como servo pactual leal” (CALVINO, 2009, p. 504).
1. A malignidade dos inimigos (Salmo 140.1–5)
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“Livra-me, Senhor, dos maus; protege-me dos violentos.” (v. 1)
Davi começa com um pedido urgente. Ele está cercado por pessoas que não apenas fazem o mal, mas que o planejam com prazer. Eles são descritos como aqueles que “tramam planos perversos” (v. 2), usando palavras como armas: “Afiam a língua como a da serpente; veneno de víbora está em seus lábios” (v. 3). A imagem remete à serpente do Éden — engano, sedução e destruição.
Segundo Spurgeon, citado por Lopes, “a língua do perverso tem mais veneno do que as víboras mais peçonhentas” (LOPES, 2022, p. 1508). Paulo, inclusive, usará esse versículo para demonstrar a corrupção universal do ser humano (Rm 3:13).
Nos versos seguintes, Davi fala de armadilhas ocultas: “os soberbos ocultam armadilhas e cordas contra mim” (v. 5). Os ataques não são apenas físicos, mas também emocionais e morais. Há laços preparados com astúcia — redes postas “à beira do caminho”. Basta um pequeno deslize, e o justo pode cair.
Calvino destaca que esses homens “viviam confiantes no poder que possuíam e engendravam estratagemas para a destruição dele” (CALVINO, 2009, p. 503). Eu aprendo aqui que o inimigo nem sempre ataca com espadas. Muitas vezes, o perigo está nas palavras, nas intenções e nos laços escondidos pela arrogância humana.
2. A confiança em Deus na batalha (Salmo 140.6–8)
“Eu declaro ao Senhor: ‘Tu és o meu Deus’. Ouve, Senhor, a minha súplica!” (v. 6)
No meio da perseguição, Davi reafirma sua fé. Ele se volta a Deus, não como último recurso, mas como seu primeiro refúgio. A oração vem do coração, como Calvino observa: “ele orava com ardor e com base num princípio secreto de fé” (CALVINO, 2009, p. 505). É fé íntima, pessoal, que não depende de circunstâncias favoráveis.
Davi continua: “Tu me proteges a cabeça no dia da batalha” (v. 7). Essa é uma referência militar. O capacete protege o guerreiro, e aqui o salmista vê o Senhor como sua verdadeira armadura — lembrando Efésios 6:17 e o capacete da salvação.
O verso 8 clama: “Não atendas os desejos dos ímpios, Senhor! Não permitas que os planos deles tenham sucesso.” O salmista não pede apenas livramento, mas que o mal não triunfe. Ele quer ver a justiça de Deus se manifestar agora.
Lopes comenta: “Davi ora para que os planos e desejos do ímpio sejam frustrados. Que seu arco seja quebrado e despedaçada sua lança” (LOPES, 2022, p. 1510). Eu também me identifico com esse clamor. Há momentos em que o que mais queremos é que Deus quebre os ciclos do mal e desarme os planos do inimigo.
3. A justiça divina contra o mal (Salmo 140.9–11)
“Recaia sobre a cabeça dos que me cercam a maldade que os seus lábios proferiram.” (v. 9)
Aqui começa o trecho imprecatório. Davi clama por retribuição. O mal que seus inimigos lançaram contra ele deve cair sobre eles. “Caiam brasas sobre eles, e sejam lançados ao fogo” (v. 10). É uma imagem poderosa: juízo divino caindo do céu, como em Sodoma (Gn 19:24; Sl 11:6).
Walton nos ajuda a entender o pano de fundo histórico: “Invocar brasas sobre alguém é uma expressão encontrada nos tratados de vassalagem de Esar-Hadom como um castigo para quem rompesse o acordo” (WALTON et al., 2018, p. 724). Davi está pedindo uma punição exemplar, dentro da linguagem e cultura da época.
Calvino é cuidadoso aqui. Ele diz que Davi “não quer dizer que seus inimigos não poderiam ser perdoados se houvesse arrependimento, mas que eles estavam longe da recuperação” (CALVINO, 2009, p. 507). A linguagem forte reflete o grau de corrupção e dureza desses inimigos.
O versículo 11 reforça o juízo: “os difamadores não se estabelecerão na terra; a desgraça os perseguirá até à morte.” O mal que praticam se volta contra eles — como em Provérbios 26:27: “quem cava uma cova cairá nela”.
Esse trecho me ensina que a justiça de Deus não falha. Pode demorar, mas ela virá. E muitas vezes, a colheita do pecado é o próprio pecado em forma de consequência.
4. A fidelidade de Deus ao justo (Salmo 140.12–13)
“Sei que o Senhor defenderá a causa do necessitado e fará justiça aos pobres.” (v. 12)
Davi conclui com confiança. Ele sabe que Deus se importa com os fracos, que não ignora os aflitos. Calvino comenta: “Deus faz isso de modo intencional, para aliviar aqueles que se encontram aflitos e restaurar os que são oprimidos” (CALVINO, 2009, p. 508).
O último versículo é cheio de esperança: “Com certeza os justos darão graças ao teu nome, e os homens íntegros viverão na tua presença.” O salmo termina com adoração. O homem que começou clamando por socorro termina celebrando a presença de Deus.
Para mim, isso é uma lição valiosa. Nem sempre Deus age imediatamente, mas Ele sempre age. A história dos justos termina na presença do Senhor — como também se vê em Apocalipse 22:3–4.
Cumprimento das profecias no Novo Testamento
Embora o Salmo 140 não contenha uma profecia messiânica direta, ele antecipa a justiça definitiva que será plenamente realizada em Cristo. Jesus é aquele que “foi rodeado por homens violentos e caluniadores”, mas que não revidou — antes, entregou sua causa a Deus (1Pe 2:23).
Além disso, os clamores por juízo e justiça se cumprem no retorno glorioso de Cristo, quando “Ele julgará com justiça” (Ap 19:11). A esperança final dos justos — viver na presença de Deus — se realiza em Cristo, o Emanuel, Deus conosco (Mt 1:23).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 140
- Homem violento / perverso – Representa aqueles que, por ações ou palavras, atacam o justo. Símbolo do mal ativo e destruidor.
- Língua da serpente / veneno de víbora – Figura do engano e da calúnia. Remete à obra de Satanás (Jo 8:44).
- Armadilhas, redes e laços – Imagens usadas para mostrar o perigo escondido. Os ataques não são apenas visíveis, mas disfarçados.
- Brasas e fogo – Símbolos do juízo divino. Referem-se à condenação final dos ímpios.
- Presença de Deus – Lugar de proteção, comunhão e vitória. É o destino final dos justos.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 140
- A maldade muitas vezes se manifesta pela língua – Palavras podem ferir mais que espadas. Eu preciso vigiar o que falo e reconhecer o poder destrutivo da calúnia.
- Nem toda oposição é visível – Davi enfrentou armadilhas ocultas. Eu também posso enfrentar ataques disfarçados — e por isso devo buscar discernimento espiritual.
- O justo não se vinga, mas ora – Davi entregou a Deus sua causa. Isso me desafia a confiar na justiça divina, mesmo quando a dor é profunda.
- Deus é escudo no dia da batalha – Em meio às lutas, eu preciso lembrar que o Senhor protege minha mente, meu coração e meu caminho.
- A justiça de Deus não falha – Mesmo que pareça tardia, ela vem. O mal será punido, e os justos serão restaurados.
- A oração precisa ser sincera e cheia de fé – Davi orava com o coração. Isso me lembra que orações eficazes vêm de uma alma que confia.
- O fim dos justos é a presença de Deus – Essa é a maior recompensa. Mais que livramento, eu desejo habitar com o Senhor.
Conclusão
O Salmo 140 é um retrato vivo da dor, da fé e da esperança. Davi foi caluniado, perseguido e ameaçado. Mas ele não se rendeu ao desespero. Ele orou, confiou e esperou. Ele não usou suas mãos para revidar — usou seus joelhos.
Ao final, ele reconhece que o mal não triunfa. Deus defende os que confiam n’Ele. A presença do Senhor é o destino final dos retos. Que eu também aprenda a transformar minha dor em oração, e minha oração em confiança. Porque, como Davi, posso ter certeza de que “os justos habitarão na tua presença”.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 501–509.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1505–1514.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 724.