Êxodo 17 é um dos capítulos mais intensos da narrativa do deserto. Ao lê-lo, eu me sinto diante de um retrato vívido da fragilidade humana e da fidelidade de Deus. É como se a tensão entre desespero e salvação estivesse pulsando em cada versículo. O povo está sedento, a liderança é testada, e um novo inimigo aparece. Mas, mesmo em meio ao caos, Deus continua presente, provendo água e garantindo vitória.
Qual é o contexto histórico e teológico de Êxodo 17?
O povo de Israel acabara de experimentar a provisão divina do maná e das codornas. Ainda assim, sua fé era frágil. Eles seguiam rumo ao monte Sinai, caminhando pelo deserto de Sim até acampar em Refidim (Êxodo 17.1), um lugar que, segundo Walton, Matthews e Chavalas, ficava na região de uádis que cruzam o sul da península do Sinai, próximo ao Horebe (WALTON et al., 2018, p. 116).
A referência geográfica reforça o simbolismo teológico: Israel está a caminho do encontro com Deus no Sinai. Mas, antes de receber a Lei, enfrenta provas no corpo e na alma.
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Teologicamente, Êxodo 17 se divide em dois grandes temas: a crise da água e a guerra contra os amalequitas. Ambos são testes. No primeiro, Israel testa o Senhor. No segundo, o Senhor testa Israel. Essa dinâmica reflete o que Deuteronômio 8.2 resume: “para saber o que estava no seu coração”.
Victor P. Hamilton destaca que este capítulo é central na formação da identidade espiritual do povo. O pecado de Massá e Meribá será lembrado em várias gerações como símbolo da incredulidade (HAMILTON, 2017, p. 390–408).
Como o texto de Êxodo 17 se desenvolve?
1. Por que o povo se queixou em Refidim? (Êxodo 17.1–3)
O versículo 1 começa com a informação de que o povo seguiu conforme a ordem do Senhor. A expressão hebraica ʿal-pî YHWH (“pela boca do Senhor”) indica direção divina detalhada (cf. Números 9.18).
No entanto, ao chegarem a Refidim, não havia água. O povo “queixou-se” (hebraico rîb) a Moisés — um verbo mais intenso do que simplesmente murmurar, podendo indicar conflito direto (cf. Gênesis 26.20; Salmos 35.1). Eles disseram: “Dê-nos água para beber” (Êxodo 17.2).
O tom acusatório aumenta: “Foi para matar de sede a nós, aos nossos filhos e aos nossos rebanhos que nos tirou do Egito?” (Êxodo 17.3). Há uma mudança significativa no texto hebraico da primeira pessoa do plural para a singular — como se alguém do povo expressasse a dor de todos. Isso torna o lamento mais pessoal e intenso.
O clamor, aqui, não é de fé, mas de exigência. Eles tentam forçar Deus a provar sua presença pela satisfação de suas necessidades imediatas. Como Janzen observa, testar a Deus é uma forma de ultimato: “ou age como queremos, ou decidimos que não está mais entre nós” (JANZEN, 1997, p. 118).
2. Como Deus responde ao teste? (Êxodo 17.4–7)
Moisés, em desespero, clama: “Que farei com este povo? Estão a ponto de me apedrejar!” (Êxodo 17.4). Segundo Hamilton, o verbo usado para “apedrejar” (sāqal) aparece aqui no Qal com sentido literal, mas em Isaías 5.2, no Piel, assume o sentido oposto: “remover pedras” (HAMILTON, 2017, p. 393).
Deus, então, ordena: “Passe à frente do povo. Leve alguns líderes com você. Leve o cajado com que você feriu o Nilo. Eu estarei diante de você sobre a rocha em Horebe. Fira a rocha, e dela sairá água” (Êxodo 17.5–6).
Essa cena é poderosa. Deus se coloca sobre a rocha — um gesto raro. Em geral, são os homens que se colocam diante de Deus (Jeremias 7.10). Mas aqui, é o Senhor quem se posiciona diante de Moisés. Há uma dimensão de auto-humilhação divina que ecoa no Novo Testamento.
A rocha é chamada ṣûr em hebraico, termo que aparece também em Deuteronômio 32.13, onde Deus é descrito como “a Rocha”. Em Números 20, o termo muda para selaʿ. Ambos representam a firmeza e a suficiência de Deus.
O lugar foi chamado de Massá (“teste”) e Meribá (“contenda”), não por ser um novo território, mas por representar o pecado cometido ali: “Por terem posto o Senhor à prova, dizendo: ‘O Senhor está entre nós, ou não?’” (Êxodo 17.7).
3. Por que Israel foi atacado pelos amalequitas? (Êxodo 17.8–13)
Subitamente, surge um novo conflito: “Os amalequitas vieram atacar os israelitas em Refidim” (Êxodo 17.8). Segundo Gênesis 36.12, os amalequitas descendiam de Esaú, sendo parentes distantes de Israel.
Walton observa que os amalequitas eram nômades agressivos, habituados a saquear e atacar caravanas no deserto (WALTON et al., 2018, p. 116). Talvez tenham ouvido falar da água recém-descoberta.
Moisés ordena a Josué que escolha homens e lute. É a primeira vez que Josué aparece, já como líder militar. Enquanto ele luta no vale, Moisés sobe ao monte com Arão e Hur (Êxodo 17.9–10).
“Enquanto Moisés mantinha as mãos erguidas, os israelitas venciam; quando as abaixava, os amalequitas venciam” (Êxodo 17.11). Esse gesto não é explicitamente descrito como oração, mas simboliza dependência e intercessão. Moisés se torna um canal de graça.
Como ele se cansa, Arão e Hur sustentam suas mãos, um de cada lado (Êxodo 17.12). Essa cena é emocionante. Moisés não pode vencer sozinho. Até os líderes mais experientes precisam de apoio. E o resultado é vitória: “Josué derrotou o exército amalequita ao fio da espada” (Êxodo 17.13).
4. Qual foi a resposta divina ao ataque? (Êxodo 17.14–16)
Depois da vitória, Deus fala a Moisés: “Escreva isso para memória. Diga a Josué que apagarei da memória os amalequitas” (Êxodo 17.14). O verbo usado para “apagar” (māḥâ) é o mesmo que aparece em textos sobre juízo e também perdão (cf. Salmo 51.9).
Moisés constrói um altar e o chama de YHWH Nissi, “O Senhor é minha bandeira” (Êxodo 17.15). A bandeira representa o estandarte de guerra, símbolo de quem lidera o exército.
O versículo 16, embora de difícil tradução, parece conter uma fórmula de juramento: “A mão sobre o trono de Yah. O Senhor fará guerra contra os amalequitas de geração em geração”. Alguns manuscritos entendem kês como kissē (“trono”), outros sugerem nês (“bandeira”).
Hamilton explica que a estrutura desse versículo aponta para um memorial de guerra, reafirmando que a hostilidade entre Israel e Amaleque era duradoura, mas sob o juízo de Deus (HAMILTON, 2017, p. 408).
Quais conexões proféticas encontramos em Êxodo 17?
As implicações messiânicas deste capítulo são profundas.
- Em 1 Coríntios 10.3–4, Paulo afirma que os israelitas “beberam da rocha espiritual que os seguia, e a rocha era Cristo”. Essa associação vem da tradição judaica que descrevia a rocha do deserto como algo que acompanhava Israel.
- A ideia de Deus se colocar sobre a rocha que seria ferida antecipa Cristo sendo ferido por nós (João 19.34). Da rocha ferida jorra água; de Cristo, sangue e água.
- A vitória sobre os amalequitas aponta para o triunfo de Cristo sobre nossos inimigos espirituais. Ele não apenas intercede como Moisés — Ele é o nosso estandarte.
Essa conexão entre rocha, intercessão e vitória revela a presença de Cristo no Antigo Testamento, não de forma alegórica vazia, mas como cumprimento da revelação progressiva de Deus.
O que Êxodo 17 me ensina para a vida hoje?
Esse capítulo fala muito ao meu coração. Primeiro, me lembra que mesmo seguindo a direção de Deus (“pela boca do Senhor”), enfrentaremos crises. O fato de estar no centro da vontade de Deus não elimina a sede, a escassez, os inimigos.
Também aprendo que testar a Deus é perigoso. Quando eu imponho a Ele as condições para crer, estou colocando o Criador no banco dos réus. Em vez disso, sou chamado a confiar, mesmo quando a rocha parece seca.
A imagem de Moisés com os braços erguidos me inspira. Às vezes, a vitória depende da perseverança em oração, ainda que silenciosa. E quando eu não consigo mais orar, preciso de Arões e Hures ao meu lado — irmãos e irmãs que sustentem minha fé.
A construção do altar também me ensina algo precioso. Não podemos esquecer o que Deus fez. Precisamos construir memoriais espirituais, lembrar as vitórias, dar nome aos livramentos. “O Senhor é minha bandeira” — Ele é quem me representa e me conduz.
Por fim, Êxodo 17 me lembra que toda provisão e toda vitória vêm de Deus. Ele nos dá água da rocha. Ele vence os inimigos. Ele nos guia até o monte. A minha parte é confiar, obedecer e não esquecer.
Referências
- HAMILTON, Victor P. Êxodo. Tradução: João Artur dos Santos. 1. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2017.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução: Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.
- Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2001.