O Salmo 87 é atribuído aos filhos de Corá, um grupo de levitas encarregado da música e do louvor no templo (1Cr 6:31–38). Esses salmos refletem profunda reverência pelo culto e pela cidade de Jerusalém, não apenas como um centro político ou geográfico, mas como o símbolo da presença de Deus entre o seu povo.
A data exata da composição do Salmo 87 é incerta, mas o contexto histórico sugerido por João Calvino aponta para o período pós-exílico, após o retorno da Babilônia (CALVINO, 2009, p. 372). A cidade de Jerusalém havia sido reconstruída, o templo erguido novamente, e o culto restabelecido. No entanto, a comunidade ainda era pequena, cercada por inimigos e marcada por uma aparência de fragilidade. O salmo, portanto, atua como uma promessa profética e messiânica, assegurando aos fiéis que Deus havia escolhido Sião e que sua glória futura superaria todas as limitações visíveis daquele momento.
Hernandes Dias Lopes destaca que “apesar de suas limitações físicas e geográficas, Jerusalém é apresentada como a cidade mais importante da história, símbolo da igreja peregrina e da igreja triunfante” (LOPES, 2022, p. 936). A cidade que Deus escolheu para estabelecer seu nome (Sl 132:13) se torna, no Salmo 87, o berço espiritual de uma nova humanidade, composta não só de judeus, mas também de gentios.
Esse salmo se destaca por antecipar uma realidade que só se concretizaria plenamente no Novo Testamento: a união de todas as nações em um único povo de Deus. Segundo Walton, “essa representação da união dos gentios por meio de um novo nascimento em Sião é única entre os escritos do Antigo Testamento” (WALTON et al., 2018, p. 707). A visão aqui é claramente messiânica e aponta para a expansão futura do Reino de Deus.
1. A cidade fundada e amada por Deus (Sl 87:1–3)
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“Ele edificou sua cidade sobre o monte santo; o Senhor ama as portas de Sião mais do que qualquer outro lugar de Jacó. Coisas gloriosas são ditas de ti, ó cidade de Deus!” (vv. 1–3)
O salmo começa exaltando Jerusalém como a cidade que Deus mesmo fundou. Embora Davi tenha conquistado Jerusalém e feito dela a capital (2Sm 5:6–10), o salmista reconhece que foi o Altíssimo quem a escolheu como sua morada (Sl 132:13–14). A referência aos “montes santos” indica a elevação geográfica da cidade, cercada por montanhas (Sl 125:2), mas, mais do que isso, indica sua separação espiritual — ela é santa porque Deus a escolheu.
Calvino comenta que “toda a excelência da santa cidade depende da soberana escolha que Deus fez dela” (CALVINO, 2009, p. 374). Essa escolha é fruto do amor divino, não de méritos humanos. Deus amou Sião acima das demais habitações de Jacó, e isso revela seu propósito em estabelecer um local onde a verdadeira adoração e o culto fossem preservados até a vinda de Cristo.
As “coisas gloriosas” mencionadas apontam para as promessas messiânicas, a restauração futura e a inclusão das nações. Mesmo em um tempo de pobreza e desprezo, os fiéis eram chamados a olhar com os olhos da fé e ver a glória que Deus reservava para sua cidade.
2. A inclusão das nações (Sl 87:4–6)
“Entre os que me reconhecem incluirei Raabe e Babilônia, além da Filístia, de Tiro, e também da Etiópia, como se tivessem nascido em Sião. De fato, acerca de Sião se dirá: ‘Todos estes nasceram nela, e o próprio Altíssimo a estabelecerá’. O Senhor escreverá no registro dos povos: ‘Este nasceu ali’.” (vv. 4–6)
Essa seção é o coração do salmo. Aqui, nações tradicionalmente inimigas de Israel são mencionadas como cidadãs da cidade de Deus. Raabe (Egito) e Babilônia simbolizam as potências opressoras do passado. Filístia, Tiro e Etiópia representam inimigos próximos e distantes. Todos eles, no entanto, são descritos como “nascidos em Sião”.
Calvino interpreta que “os estrangeiros de nascença serão contados entre o povo santo, como se fossem descendentes de Abraão” (CALVINO, 2009, p. 379). Essa linguagem de novo nascimento antecipa a doutrina neotestamentária da regeneração (Jo 3:3–5). Não se trata de origem física, mas de filiação espiritual.
Walton esclarece que “o registro dos povos” era uma prática comum em cidades reais, onde os cidadãos gozavam de privilégios e eram identificados em listas oficiais (WALTON et al., 2018, p. 707). Nesse contexto, ser registrado como cidadão de Sião era mais honroso do que qualquer posição em outro império terrestre.
Ao ler esse trecho, eu aprendo que o Reino de Deus é inclusivo e surpreendente. Os que eram inimigos podem se tornar irmãos. As fronteiras nacionais cedem lugar à graça soberana. Em Cristo, todos podemos ser feitos filhos de Deus (Gl 3:28–29).
3. A alegria dos redimidos (Sl 87:7)
“Com danças e cânticos, dirão: ‘Em Sião estão as nossas origens!’” (v. 7)
O salmo termina com uma visão de celebração. Os cidadãos de Sião cantam e dançam porque reconhecem que ali está sua verdadeira origem. Essa imagem contrasta com a miséria passada e aponta para uma realidade restaurada, gloriosa e festiva.
Hernandes Dias Lopes afirma que “esse irrompimento de júbilo demonstra que Sião não é apenas um lugar de estabilidade e glória, mas também de alegria e frescor” (LOPES, 2022, p. 940). A fonte da alegria não é a cidade em si, mas o Deus que a habita.
Spurgeon também destaca que “todas as fontes de provisão e alegria fluem do Senhor que fundou a Igreja” (LOPES, 2022, p. 941). A cidade se torna símbolo da comunhão com Deus, da nova vida, da pertença e da esperança escatológica.
Cumprimento das profecias
O Salmo 87 tem caráter nitidamente messiânico. Sua profecia se cumpre na inclusão dos gentios na Igreja, conforme vemos no Novo Testamento. Paulo declara que “a Jerusalém lá de cima é nossa mãe” (Gl 4:26), ecoando diretamente o espírito deste salmo.
As nações que antes eram pagãs agora fazem parte do povo de Deus por meio de Cristo. Essa é a promessa de Apocalipse 21: as nações andarão na luz da Nova Jerusalém. A profecia de que todos serão registrados como cidadãos de Sião aponta para o Livro da Vida do Cordeiro (Ap 21:27), onde estão escritos os nomes dos que foram salvos pela graça.
A imagem de um novo nascimento em Sião também se cumpre em João 3:3–5, onde Jesus ensina que ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo.
Significado dos nomes e simbolismos
- Raabe – Nome poético para o Egito, usado como figura de força arrogante. Simboliza inimigos transformados em amigos (Is 30:7).
- Sião – Representa Jerusalém, mas também a comunidade espiritual dos salvos. É a “cidade de Deus”.
- Nascer em Sião – Expressão espiritual que aponta para o novo nascimento. Tornar-se cidadão de Sião é sinônimo de conversão verdadeira.
- Registro dos povos – Alusão ao Livro da Vida. Apenas os que têm seus nomes ali serão reconhecidos como cidadãos do Reino (Ap 21:27).
- Fontes em Sião – Imagem de provisão espiritual. Cristo é a fonte da água viva (Jo 7:38).
Lições espirituais e aplicações práticas
- Deus escolhe o que o mundo despreza – Jerusalém não tinha vantagens geográficas, mas foi escolhida por Deus. Ele não olha como o homem olha.
- A Igreja é formada por todos os povos – Egito, Babilônia, Tiro… até os piores inimigos são bem-vindos quando reconhecem o Senhor.
- Nascer em Sião é uma experiência espiritual – Não depende da origem, mas da graça. Eu também fui enxertado na cidade de Deus.
- A cidadania no Reino é um privilégio inigualável – Ser reconhecido como pertencente a Deus vale mais do que qualquer status neste mundo.
- A alegria verdadeira nasce da comunhão com Deus – Em Sião estão nossas fontes. Fora dela, tudo seca.
- A esperança da Igreja é eterna – O que começou com um pequeno remanescente se tornou um povo incontável. E ainda virá o dia da glória completa.
- Devo manter meus olhos na cidade de Deus – Quando o mundo parece instável, lembro que a Igreja é fundada pelo Altíssimo. Ela não será abalada.
Conclusão
O Salmo 87 é uma celebração profética da Igreja, do Reino de Deus e da comunhão universal dos redimidos. Ele antecipa, com beleza poética e profundidade teológica, a grande obra de Deus em reunir para si um povo de todas as nações.
Ao ler esse salmo, eu aprendo que minha identidade mais profunda não está no país em que nasci, mas na cidade que Deus edificou. Ser contado entre os cidadãos de Sião é minha maior honra. E como peregrino neste mundo, sigo caminhando com os olhos fixos naquela cidade que tem fundamentos, cujo arquiteto e edificador é Deus (Hb 11:10).
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 371–385.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 935–941.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 706–707.