Ezequiel 3 me ensina que o chamado de Deus exige entrega total. O profeta não apenas ouve a palavra divina — ele a come, a internaliza, é transformado por ela. Seu ministério não nasce de uma ideia ou desejo pessoal, mas de um encontro com o Deus glorioso e soberano. Mesmo amargurado e isolado, Ezequiel descobre que a fidelidade ao chamado vale mais do que o conforto.
Qual é o contexto histórico e teológico de Ezequiel 3?
Ezequiel 3 está situado dentro de uma das narrativas mais marcantes do Antigo Testamento: o chamado profético no contexto do exílio. Em 593 a.C., Ezequiel está na Babilônia, entre os exilados judeus, depois da primeira deportação ocorrida em 597 a.C. Ele pertencia à linhagem sacerdotal, mas, longe do templo, sua vocação sofre uma reviravolta. Ao invés de ministrar no altar, ele se torna porta-voz do juízo de Deus.
Segundo Walton, Matthews e Chavalas (2018), Ezequiel foi deslocado para a região de Nipur, às margens do canal Quebar. Essa área, repleta de ruínas e alagadiços, se tornaria o campo de sua missão. Mais do que apenas uma mudança geográfica, isso marca uma transformação espiritual profunda. Deus não apenas está presente no exílio — Ele comissiona seus servos ali.
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Daniel I. Block (2012) destaca que o capítulo 3 marca a conclusão do processo de comissionamento iniciado no capítulo 1. Deus já revelou sua glória, agora sela seu chamado com ações simbólicas: Ezequiel come o rolo, é levado pelo Espírito e, por fim, é estabelecido como sentinela. Esse chamado é espiritual, emocional e físico — afeta o corpo, a mente e o coração do profeta.
Ezequiel vive uma ruptura. Ele é arrancado do que conhecia como normal. E, no meio da crise, Deus o chama. Esse é um padrão comum na Bíblia — Deus se revela em meio à desestrutura. Ezequiel 3 é sobre isso: um homem tomado pela Palavra, comissionado em meio à dor, e isolado para cumprir um ministério difícil, mas necessário.
Como o texto de Ezequiel 3 se desenvolve?
1. O que significa comer o rolo? (Ezequiel 3.1–3)
O chamado começa com um gesto marcante: “Filho do homem, coma este rolo” (v. 1). O rolo está cheio de “lamentações, prantos e ais” (cf. 2.10). É uma mensagem amarga, mas quando o profeta a come, diz: “em minha boca era doce como mel” (v. 3).
Essa imagem é poderosa. Comer o rolo representa absorver a mensagem de Deus até que ela se torne parte de quem o profeta é. Como observa Block (2012), o profeta não apenas anuncia a Palavra — ele a carrega no corpo. Ele vive o que prega.
Jeremias teve uma experiência semelhante: “Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria para o coração” (Jeremias 15.16). Mas em Ezequiel o gesto é literal dentro da visão. O profeta não pode falar em nome de Deus sem primeiro ser transformado por Ele.
Isso me faz pensar: será que eu tenho me alimentado da Palavra a esse ponto? Ou só a conheço de forma superficial?
2. Por que Ezequiel é enviado aos exilados? (Ezequiel 3.4–11)
Deus então envia Ezequiel à “nação de Israel” (v. 4). Mas, paradoxalmente, não é um povo receptivo. “Eles não querem me ouvir” (v. 7), diz o Senhor. Se Ezequiel fosse enviado a estrangeiros, seria melhor recebido. Isso mostra que o problema do povo não é cultural, é espiritual.
Para lidar com essa resistência, Deus promete: “Tornarei a sua testa como a mais dura das pedras” (v. 9). Aqui há um jogo de palavras. O nome “Ezequiel” (Yeḥezqēl) carrega a ideia de força de Deus. O profeta será endurecido para enfrentar um povo obstinado.
Segundo Walton, Matthews e Chavalas (2018), esse “endurecimento” é comparável à pedra mais dura conhecida da época — não ao diamante moderno, mas ao coríndon. É uma forma de dizer: Deus tornará o profeta inabalável diante da oposição.
O texto reforça a fidelidade: “quer ouçam quer deixem de ouvir” (v. 11). O profeta não é responsável por convencer. Sua missão é anunciar com fidelidade.
3. O que acontece quando o Espírito leva Ezequiel? (Ezequiel 3.12–15)
“O Espírito elevou-me” (v. 12). Mais uma vez, o Espírito aparece de forma ativa. Ele move o profeta, mas também o enche de amargura: “com o meu espírito cheio de amargura e de ira” (v. 14).
Block observa que essa amargura não é contra Deus, mas contra o peso da missão. A mão do Senhor estava sobre ele — uma expressão que denota autoridade, mas também pressão espiritual.
Ezequiel é levado até Tel-Abibe, um local que, segundo Walton, significa “monte do dilúvio”, remetendo à ideia de ruínas. Ali ele fica por sete dias, “atônito” (v. 15), expressão que traduz uma combinação de choque, silêncio e angústia.
Esse momento é essencial. O profeta precisa assimilar o chamado. Antes de falar, ele precisa calar. Antes de agir, precisa sentir o peso daquilo que foi confiado a ele.
4. O que significa ser um sentinela? (Ezequiel 3.16–21)
Ao final dos sete dias, Deus fala novamente: “Eu o fiz sentinela para a nação de Israel” (v. 17). A imagem é clara. O sentinela é aquele que vigia e avisa sobre o perigo. Ezequiel deve avisar o povo do juízo de Deus.
O texto apresenta quatro cenários (vv. 18–21). Em todos, o foco é a responsabilidade do profeta. Se ele não avisar, será culpado. Se avisar, estará livre da culpa, mesmo que o povo não mude.
Essa seção tem um tom jurídico. Como destaca Block (2012), os verbos usados (avisar, morrer, ser responsável) refletem uma linguagem de tribunal. Deus é o juiz, o povo é o réu, e o profeta é o mensageiro do veredito.
Esse trecho me confronta. Deus me chamou para falar sua Palavra com coragem. Não posso me calar diante do erro. Se vejo alguém caminhando para longe de Deus e fico em silêncio, assumo parte da culpa.
5. Por que Ezequiel fica mudo? (Ezequiel 3.22–27)
Por fim, Ezequiel é levado a um lugar isolado. Lá, a glória de Deus aparece novamente (v. 23). Ele cai com o rosto em terra. Mas ao invés de ser liberado para falar, Deus o manda se trancar em casa e o faz ficar mudo (v. 24–26).
Essa mudez não é castigo. É sinal. Como mostram Walton, Matthews e Chavalas (2018), experiências como essa eram conhecidas na Mesopotâmia. Pessoas “tocadas pelos deuses” perdiam momentaneamente os sentidos. Mas, no caso de Ezequiel, é Yahweh quem impõe esse silêncio — e ele dura até Jerusalém cair (cf. 33.22).
Block interpreta essa mudez como parte da iniciação profética. O profeta só falará quando Deus mandar. Sua voz será controlada pela Palavra divina. Ele não fala por impulso, mas por direção.
Essa seção encerra o chamado. A partir daqui, Ezequiel está pronto para começar sua missão — como sentinela, como sinal vivo, como servo obediente.
Como Ezequiel 3 se cumpre no Novo Testamento?
O chamado de Ezequiel ecoa no ministério de Jesus e dos apóstolos. Jesus, como o profeta por excelência, também foi rejeitado por seu próprio povo (João 1.11). Ele também falou o que ouviu do Pai (João 12.49), e seu compromisso era com a fidelidade, não com a popularidade.
Paulo retoma a linguagem do “vigia” em Atos 20.26–27, quando diz aos presbíteros de Éfeso: “Portanto, eu lhes declaro hoje que estou inocente do sangue de todos. Pois não deixei de proclamar a vocês toda a vontade de Deus”.
Além disso, a figura do profeta que come o livro aparece novamente em Apocalipse 10.9–10, quando João é chamado a comer um livrinho que era doce na boca, mas amargo no estômago — linguagem semelhante à de Ezequiel.
O padrão se repete: o verdadeiro servo de Deus vive o que prega. E, mesmo que sua mensagem seja dura, ela precisa ser anunciada com fidelidade.
O que Ezequiel 3 me ensina para a vida hoje?
Ao ler Ezequiel 3, percebo que ser chamado por Deus não é algo leve. É um convite à rendição. Deus não procura vozes bonitas, mas corações obedientes. E isso mexe comigo.
Aprendo que a Palavra precisa ser comida — não apenas estudada, mas internalizada. Preciso parar de apenas ler a Bíblia como informação. Ela precisa me transformar por dentro.
Também entendo que Deus pode me enviar a pessoas difíceis — até mesmo àquelas que me conhecem, mas não me respeitam espiritualmente. E, mesmo assim, preciso falar. Minha missão não depende da resposta deles, mas da minha fidelidade.
O silêncio de Ezequiel me faz pensar no valor de falar apenas o que Deus manda. Em um tempo em que todo mundo quer dar opinião, talvez o maior sinal profético seja saber calar até Deus mandar falar.
Por fim, o papel do sentinela me traz responsabilidade. Se vejo alguém andando em pecado e fico em silêncio, Deus me chamará para prestar contas. Isso não significa ser agressivo, mas ser amorosamente claro.
Ezequiel me mostra que o ministério começa com um coração quebrado e um estômago cheio da Palavra. E, mesmo que a missão doa, mesmo que o isolamento venha, vale a pena obedecer.
Referências
- BLOCK, Daniel I. O livro de Ezequiel. Tradução: Déborah Agria Melo da Silva et al. 1. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução: Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.
- Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2001.