O Salmo 1 ocupa uma posição estratégica dentro do Livro dos Salmos, funcionando como uma introdução que estabelece um princípio fundamental da espiritualidade bíblica: a distinção entre os justos e os ímpios.
Conforme observa João Calvino, a escolha desse salmo como abertura do saltério não é acidental, pois ele apresenta um resumo da bem-aventurança daquele que se dedica à lei do Senhor e da condenação daqueles que a desprezam.
Segundo ele, “a suma e substância de todo o Salmo consistem em que são bem-aventurados os que aplicam seus corações a buscar a sabedoria celestial” (Calvino, Comentário sobre os Salmos, p. 41).
O gênero literário do Salmo 1 é sapiencial, refletindo os princípios da literatura de sabedoria hebraica, semelhante a Provérbios e Eclesiastes. Como observa Allen P. Ross, esse salmo enfatiza “os dois caminhos da vida”, utilizando metáforas e contrastes para ilustrar a diferença entre a obediência e a impiedade (Ross, The Bible Knowledge Commentary, p. 790).
Além disso, sua estrutura poética apresenta paralelismos que reforçam a ideia de que há apenas duas opções diante do ser humano: seguir o caminho da justiça e prosperar sob a bênção de Deus ou seguir o caminho dos ímpios e enfrentar a destruição.
A autoria do Salmo 1 não é especificada, mas, como destaca Hernandes Dias Lopes, a tradição judaica frequentemente o atribui a Davi. No entanto, sua inclusão no saltério pode ter ocorrido em um período posterior, possivelmente na época de Esdras, quando os salmos foram organizados em sua forma final (Lopes, Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, p. 19).
O contexto histórico sugere que a ênfase na meditação na Torá reflete um tempo em que Israel já possuía uma tradição estabelecida de ensino da Lei, tornando esse salmo uma exortação à fidelidade à Palavra de Deus.
I. O caminho do justo (Sl 1:1-3)
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O salmo começa com a expressão: “Como é feliz aquele que não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores!” (Salmo 1:1).
A palavra hebraica ashrê (feliz, bem-aventurado) sugere mais do que uma emoção passageira; trata-se de um estado de vida aprovado por Deus. Calvino argumenta que essa bem-aventurança não se baseia em circunstâncias externas, mas na condição espiritual do indivíduo diante de Deus (Calvino, p. 42).
O versículo também apresenta uma progressão na influência do pecado: primeiro, o ímpio anda segundo o conselho dos perversos, depois se detém em sua conduta e, por fim, se assenta entre os zombadores. Essa gradação sugere um endurecimento progressivo no pecado.
João Calvino explica que “os servos de Deus devem diligenciar-se ao máximo por cultivar aversão pela vida dos ímpios”, pois o pecado começa sutilmente, mas logo domina completamente a vida da pessoa (Calvino, p. 44).
Em contraste, o justo “tem prazer na lei do Senhor e nela medita dia e noite” (Salmo 1:2). Segundo Allen P. Ross, o termo Torá aqui não se refere apenas à Lei mosaica, mas a toda a instrução de Deus.
A palavra medita (hagah) implica um estudo contínuo e um envolvimento pessoal com a Palavra (Ross, p. 790). Essa mesma ideia aparece em Josué 1:8, onde Deus exorta à meditação constante na Lei.
O versículo 3 reforça essa ideia por meio de uma poderosa metáfora: “É como árvore plantada à beira de águas correntes”. Hernandes Dias Lopes observa que essa imagem representa “estabilidade, crescimento e prosperidade espiritual”, em contraste com a inconstância dos ímpios (Lopes, p. 23). Essa mesma figura é utilizada em Jeremias 17:7-8, onde o justo é comparado a uma árvore frondosa que não teme o tempo seco.
II. O caminho do ímpio (Sl 1:4-5)
Enquanto o justo é comparado a uma árvore frutífera, os ímpios são descritos como “palha que o vento leva” (Salmo 1:4). Essa imagem vem do processo de debulha, onde a palha, sem peso e valor, é facilmente levada pelo vento. Como Ross explica, “os ímpios não têm raízes espirituais e, por isso, sua existência carece de valor eterno” (Ross, p. 791).
O versículo 5 enfatiza a condenação dos ímpios: “Por isso os ímpios não resistirão no julgamento, nem os pecadores na comunidade dos justos”. Aqui, a expressão comunidade dos justos remete a um tribunal divino.
O Comentário Histórico-Cultural da Bíblia explica que essa linguagem evoca o conceito da “assembleia celestial”, onde Deus preside sobre os justos e condena os ímpios (Walton et al., p. 674). Essa mesma ideia aparece em Mateus 25:31-33, na separação das ovelhas e bodes.
III. O destino final dos dois caminhos (Sl 1:6)
O salmo conclui afirmando que “O Senhor aprova o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios leva à destruição!” (Salmo 1:6). A palavra hebraica yada’ (aprova, conhece) não significa apenas saber, mas indica um relacionamento íntimo e cuidadoso de Deus com os justos. Calvino ressalta que “Deus é o Juiz do mundo e fará distinção entre os retos e os perversos” (Calvino, p. 49).
Por outro lado, o destino dos ímpios é a destruição, termo que sugere um colapso irreversível, tanto no juízo temporal quanto no eterno. Essa ideia ecoa em passagens como Mateus 7:13-14, onde Jesus fala sobre o caminho largo que leva à perdição.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 1 não contenha uma profecia messiânica direta, sua mensagem se alinha com os ensinamentos de Jesus. A ênfase nos dois caminhos encontra paralelos nos discursos de Cristo, especialmente na parábola da videira em João 15:5-6, onde os que permanecem em Deus são comparados a ramos frutíferos, enquanto os infiéis são lançados ao fogo.
Além disso, o julgamento dos ímpios descrito no versículo 5 antecipa o juízo final mencionado em Apocalipse 20:12-15, onde os que rejeitam a Deus são excluídos da comunhão com Ele.
Lições espirituais e aplicações práticas
- A verdadeira felicidade vem da obediência a Deus
- A influência do meio ambiente espiritual é decisiva
- A meditação na Palavra de Deus transforma a vida
- O juízo de Deus é inevitável
Conclusão
O Salmo 1 apresenta um chamado à escolha: seguir o caminho da justiça e prosperar espiritualmente ou seguir o caminho da impiedade e perecer. Sua mensagem ressoa em toda a Escritura, reforçando a importância de uma vida enraizada na Palavra de Deus.
Referências
- CALVINO, João. Comentário sobre os Salmos. São Paulo: Paracletos, 2009.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos Volume 1. São José dos Campos: Hagnos, 2014.
- ROSS, Allen P. “Psalms” in: WALVOORD, John F.; ZUCK, Roy B. (Ed.). The Bible Knowledge Commentary – Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1985.
- WALTON, John H. et al. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2010.