O Salmo 107 inicia o quinto livro do Saltério (Salmos 107–150) e marca uma nova etapa na experiência espiritual de Israel: o retorno do exílio. Embora não haja indicação clara de autoria, muitos estudiosos situam sua composição após o decreto de Ciro, que permitiu o retorno dos judeus à Palestina (cf. Esdras 1:1–4). O tom do salmo é de celebração pela libertação, mas também de reflexão sobre o sofrimento que precedeu a restauração.
Esse salmo forma um tríptico com os Salmos 105 e 106. Enquanto o Salmo 105 celebra a fidelidade de Deus na história de Israel, e o Salmo 106 destaca os pecados e a infidelidade do povo, o Salmo 107 mostra como Deus respondeu com misericórdia ao clamor dos aflitos. O foco está na providência divina, expressa em quatro cenas diferentes de angústia e livramento: no deserto, na prisão, na enfermidade e no mar.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “este salmo nos ensina não somente que a providência de Deus está sobre os homens, mas que seu ouvido está aberto às suas orações” (LOPES, 2022, p. 1155). A estrutura literária do salmo é marcada por um refrão que se repete nos versículos 6, 13, 19 e 28: “Na sua aflição, clamaram ao Senhor, e ele os livrou da tribulação em que se encontravam”.
1. Introdução: Ação de graças e redenção (Sl 107:1–3)
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O salmo começa com um convite claro: “Dêem graças ao Senhor porque ele é bom; o seu amor dura para sempre” (v. 1). Essa expressão aparece em outros salmos, como Salmo 136, destacando o hesed de Deus — seu amor leal e constante.
O versículo 2 fala dos que foram resgatados por Deus. A linguagem remete à redenção do Egito, mas agora aplicada ao retorno do exílio babilônico. O versículo 3 amplia essa ideia, mencionando a reunião dos dispersos dos quatro cantos da terra, cumprindo profecias como Isaías 43:5–6.
2. Livramento no deserto (Salmo 107:4–9)
Os exilados são comparados a viajantes perdidos: “Perambularam pelo deserto e por terras áridas sem encontrar cidade habitada” (v. 4). Embora nem todos tenham experimentado um deserto literal, a imagem retrata o vazio e a instabilidade do exílio.
No versículo 6, o clamor é ouvido: “Na sua aflição, clamaram ao Senhor”. A resposta divina vem em forma de direção, provisão e segurança. Deus os conduz “por caminho seguro” (v. 7) e “sacia o sedento e satisfaz plenamente o faminto” (v. 9), como prometido em Isaías 41:17–20.
Ao ler esse trecho, eu reconheço como Deus transforma os desertos da vida em caminhos habitáveis. Mesmo quando tudo parece perdido, Ele continua conduzindo seu povo.
3. Livramento das prisões (Salmo 107:10–16)
O texto segue com uma imagem sombria: “Assentaram-se nas trevas e na sombra mortal, aflitos, acorrentados” (v. 10). O Comentário Histórico-Cultural explica que as prisões do Antigo Oriente Próximo eram fossos profundos, sem qualquer intenção de reabilitação (WALTON et al., 2018, p. 714).
O motivo da prisão é espiritual: “se rebelaram contra as palavras de Deus” (v. 11). Mas, mesmo assim, Deus responde ao clamor: “Tirou-os das trevas e da sombra mortal, e quebrou as correntes” (v. 14). As portas de bronze e trancas de ferro (v. 16) evocam as defesas da Babilônia descritas por Heródoto e simbolizam obstáculos aparentemente intransponíveis, mas que não resistem ao poder de Deus (cf. Isaías 45:2).
Esse texto me lembra que nenhum cativeiro, físico ou emocional, está fora do alcance do livramento de Deus. Ele quebra correntes que ninguém mais consegue romper.
4. Livramento das enfermidades (Salmo 107:17–22)
Os enfermos aqui descritos foram afligidos por causa de seus pecados: “sofreram por causa das suas maldades” (v. 17). Embora nem toda doença seja consequência direta do pecado, algumas são, conforme advertido em Deuteronômio 28:58–61.
A doença é intensa: “chegaram perto das portas da morte” (v. 18). Mas mais uma vez, Deus responde: “Ele enviou a sua palavra e os curou” (v. 20). A Palavra tem poder curador, não apenas físico, mas também espiritual. Como cristão, eu creio que Deus ainda fala e cura por sua Palavra, como vemos em Salmo 103:3.
5. Livramento no mar (Salmo 107:23–32)
A imagem agora muda para os que “fizeram-se ao mar em navios” (v. 23). No mundo antigo, o mar simbolizava o caos, e navegar era sempre perigoso. Quando a tempestade vem, “toda a sua habilidade foi inútil” (v. 27). Mas, ao clamarem ao Senhor, “Ele reduziu a tempestade a uma brisa” (v. 29).
Essa descrição se conecta com o episódio em que Jesus acalma a tempestade (cf. Marcos 4:39). Cristo, como o próprio Deus, exerce domínio sobre o mar, reafirmando que o Senhor do Salmo 107 é o mesmo que caminha sobre as águas.
6. Deus transforma realidades (Salmo 107:33–38)
Essa seção mostra Deus agindo diretamente sobre a terra: “transforma os rios em deserto… e o deserto em açudes” (vv. 33,35). Como em Isaías 35:6–7, o deserto floresce pela ação soberana de Deus.
Deus não apenas restaura a terra, mas estabelece nela os famintos (v. 36), abençoando suas plantações, colheitas e rebanhos (v. 38). Isso revela que a restauração de Deus é abrangente: espiritual, social e material.
7. Disciplina e restauração (Salmo 107:39–42)
Deus permite a humilhação dos orgulhosos: “os faz vagar num deserto sem caminhos” (v. 40). Mas exalta os pobres: “tira os pobres da miséria e aumenta as suas famílias como rebanhos” (v. 41). Essa inversão é tema recorrente nas Escrituras, como no cântico de Maria (Lucas 1:52–53).
Essa parte do salmo me ensina que a justiça de Deus não falha. Ele vê os que estão em aflição e os levanta, mesmo quando os poderosos ignoram suas dores.
8. Conclusão e chamado à sabedoria (Salmo 107:43)
O salmo termina com um apelo: “Reflitam nisso os sábios e considerem a bondade do Senhor”. Como também ocorre em Provérbios 1, sabedoria bíblica não é mera intelectualidade, mas discernimento espiritual que nasce da contemplação da ação de Deus na história.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 107 não traga uma profecia messiânica direta, seus temas se cumprem plenamente em Cristo. Ele é o Redentor que nos tira do cativeiro (Lc 4:18), o Médico que cura com a palavra (Mt 8:16), o Capitão que acalma as tempestades (Mc 4:39), e o Senhor que conduz o povo de volta à casa do Pai (Jo 14:3).
Cada livramento descrito no salmo antecipa a redenção final que recebemos em Cristo. Ele é a resposta definitiva ao clamor do coração humano.
Significado dos nomes e simbolismos
- Amor leal (hesed) – Amor baseado em aliança, inabalável e constante.
- Deserto – Lugar de provação, mas também de encontro com Deus.
- Correntes / prisões – Representam as consequências do pecado e a opressão espiritual.
- Tempestade no mar – Caos e perigo, controlados pela soberania divina.
- Portas de bronze – Barreiras humanas quebradas pelo poder de Deus (cf. Is 45:2).
- Caminho seguro – A direção divina em meio à incerteza.
Lições espirituais e aplicações práticas
- O clamor sincero sempre encontra resposta em Deus – Não importa a situação, Deus ouve e responde ao coração quebrantado.
- A disciplina divina visa restaurar, não destruir – Mesmo quando permite sofrimento, o objetivo de Deus é a redenção.
- A bondade do Senhor é maior que o merecimento humano – Os livramentos descritos não são merecidos, mas frutos da graça.
- Deus transforma cenários improváveis – Desertos viram jardins, prisões se tornam liberdade, e tempestades se acalmam.
- O louvor é a resposta natural ao livramento – Como nos ensina Salmo 103, devemos bendizer o Senhor por todos os seus benefícios.
- Ser sábio é observar as obras de Deus com temor e gratidão – A verdadeira sabedoria começa quando aprendemos a discernir a mão de Deus na história.
Conclusão
O Salmo 107 é um retrato vívido da fidelidade de Deus diante da fragilidade humana. Ao ler este salmo, eu me vejo nos errantes, nos acorrentados, nos enfermos e nos navegantes. E, mais ainda, me vejo na resposta divina: o Deus que ouve, salva e restaura. Ser sábio, como afirma o versículo final, é aprender com essas histórias e viver à luz da bondade do Senhor.
Referências
LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1155–1166.
WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 714–715.