O Salmo 114 pertence ao grupo conhecido como Hallel Egípcio (Salmos 113–118), cantado nas grandes festas judaicas, como a Páscoa, que comemorava a libertação do Egito. Este salmo, em especial, celebra o poder de Deus manifestado durante o Êxodo, quando Ele interveio na história para tirar Israel da escravidão e conduzi-lo à Terra Prometida.
A autoria do salmo é anônima, e seu estilo poético, carregado de imagens vivas e personificações da natureza, remonta ao tempo em que a poesia hebraica servia tanto para instrução quanto para adoração pública. Ele não apenas narra o evento do Êxodo, mas o interpreta como o nascimento de Israel como povo consagrado a Deus. A estrutura do salmo é cuidadosamente organizada para mostrar o contraste entre a fragilidade humana e a majestade divina.
Hernandes Dias Lopes destaca que “o salmo descreve o êxodo de Israel do Egito, a provisão do Senhor na jornada do povo pelo deserto, sua entrada na Terra Prometida e a conquista de seus inimigos” (LOPES, 2022, p. 1223). Para ele, este é um hino ao Deus que reina sobre a natureza e que age em favor do seu povo. A libertação do Egito, como se lê em Êxodo 12, não foi apenas um livramento político, mas uma manifestação da graça e do poder redentor de Deus.
João Calvino, por sua vez, entende o salmo como um memorial constante da adoção divina: “Deus, ao tirar seu povo do Egito, deu provas de seu poder e graça, os quais devem ser tidos como um memorial permanente” (CALVINO, 2009, p. 105).
1. A libertação do Egito (Sl 114:1)
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“Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó saiu do meio de um povo de língua estrangeira”
O salmo começa com uma lembrança direta do Êxodo. A expressão “povo de língua estrangeira” enfatiza a condição de estrangeiros e oprimidos dos israelitas. Eles viviam em uma terra que não era sua, sob domínio de uma cultura e linguagem estranhas.
Calvino observa que “esse êxodo é um memorável penhor do amor de Deus para com os filhos de Abraão” (CALVINO, 2009, p. 105). Esse momento marca o início de Israel como nação santa, separada para Deus. Ao ler esse versículo, eu percebo que minha própria história de redenção começa quando sou tirado da “terra da escravidão”, o mundo, pelo braço poderoso de Deus.
2. A consagração do povo (Sl 114:2)
“Judá tornou-se o santuário de Deus, Israel o seu domínio.”
O propósito da libertação é revelado: formar uma comunidade de adoradores e servos. Judá, como tribo de liderança, simboliza a centralidade do culto a Deus. Israel representa o povo sob o domínio direto do Senhor.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “o Senhor não apenas separou o povo de Israel do Egito, como também os separou para si” (LOPES, 2022, p. 1224). A linguagem aqui é teológica: Israel foi redimido não apenas para ser livre, mas para pertencer a Deus. Ao ler isso, eu aprendo que a salvação não é apenas libertação do pecado, mas chamada para viver sob o senhorio de Cristo.
John H. Walton ressalta que “essa expressão reflete uma imagem do Templo como Estado. O trono de Deus ficava neste lugar, e o do rei, em seu palácio” (WALTON et al., 2018, p. 717).
3. A resposta da natureza (Sl 114:3-4)
“O mar olhou e fugiu, o Jordão retrocedeu; os montes saltaram como carneiros, as colinas, como cordeiros.”
Esses versículos fazem alusão à abertura do Mar Vermelho (Êxodo 14) e à travessia do Jordão (Josué 3). A linguagem poética dá vida à criação, que reage à presença de Deus com temor e alegria.
Calvino interpreta esse trecho como “uma descrição que, embora poética, não excede os fatos, pois o mar e os montes reconheceram a presença da majestade divina” (CALVINO, 2009, p. 106). Ao ler isso, vejo que toda a criação reconhece quem é o verdadeiro Rei.
Walton comenta que “o verbo hebraico traduzido por ‘saltar’ é usado para descrever movimento travesso ou saltitante, como o de ovelhas” (WALTON et al., 2018, p. 718). Essa imagem transmite leveza, mas também submissão ao comando de Deus.
4. A pergunta retórica e sua resposta (Sl 114:5-7)
“Por que fugir, ó mar? E você, Jordão, por que retroceder? […] Estremeça na presença do Soberano, ó terra, na presença do Deus de Jacó!”
Aqui o salmista utiliza perguntas retóricas para despertar reflexão. Por que a natureza reage assim? A resposta vem no versículo 7: tudo estremece diante do Senhor.
Calvino destaca que “as palavras são dirigidas ao mar e à terra, mas são mais imediatamente dirigidas a nós, para que contemplemos atentamente as obras de Deus” (CALVINO, 2009, p. 107). A criação responde ao Criador, enquanto muitos homens permanecem indiferentes.
Eu me identifico com esse chamado: quantas vezes a natureza se curva, mas meu coração resiste? Esse trecho me leva a rever minha reverência diante de Deus. O salmo não é apenas sobre eventos antigos, mas sobre a disposição que devo ter diante do Deus que ainda reina.
5. O milagre da provisão (Sl 114:8)
“Ele fez da rocha um açude, do rochedo uma fonte.”
O salmo termina com um milagre que expressa o cuidado contínuo de Deus: a provisão de água no deserto, como narrado em Êxodo 17 e Números 20.
Calvino afirma que “a água fluiu em lugares anteriormente secos e abruptos, o que era algo que excedia o curso da natureza” (CALVINO, 2009, p. 108). O Deus que abre caminho também sustenta no percurso.
Lendo esse versículo, lembro que mesmo nos desertos espirituais, Deus continua operando milagres. Quando parece não haver saída, Ele pode fazer jorrar água da rocha.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 114 não contenha uma profecia messiânica explícita, ele aponta para verdades que se cumprem em Cristo. A libertação do Egito prefigura a redenção do pecado realizada por Jesus. O Novo Testamento ecoa essa verdade quando declara que Cristo é a nossa Páscoa (1Co 5:7).
O apóstolo Paulo identifica Cristo como “a rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo” (1Co 10:4). A provisão no deserto é uma figura do sustento espiritual que Jesus oferece à sua Igreja.
Além disso, a reação da criação à presença de Deus antecipa o que Apocalipse descreve no retorno de Cristo. Em Apocalipse 21, céu e terra antigos fogem de diante do trono, e um novo mundo é estabelecido.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 114
- Israel – Povo da aliança, descendente de Jacó. Representa a comunidade redimida por Deus.
- Judá – Tribo que liderava o povo no deserto, sede do templo e do trono de Davi.
- Mar e Jordão – Barreiras naturais vencidas pela intervenção divina. Símbolos da salvação e da entrada na promessa.
- Montes e colinas – Representações da natureza reagindo à presença divina.
- Rocha e seixo – Imagens da dureza transformada em vida, pela palavra de Deus.
- Deus de Jacó – Nome relacional. Mostra que o mesmo Deus que agiu no passado continua fiel hoje.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 114
- A salvação é iniciativa de Deus – Israel não saiu do Egito por força própria, mas pela mão poderosa do Senhor.
- A natureza reconhece a autoridade de Deus – O mar fugiu, o Jordão recuou, os montes saltaram. Só o ser humano pode ignorar sua presença.
- O culto começa com a memória da redenção – Celebrar a libertação é lembrar de onde viemos e quem nos libertou.
- A provisão de Deus é constante – Ele não apenas nos liberta, mas cuida de cada etapa da jornada.
- A presença de Deus transforma o impossível em caminho – O mar se abriu, a rocha jorrou. Nada resiste à sua vontade.
- Nossa resposta deve ser reverência – O salmo nos convida a tremer diante do Deus que ainda reina.
Conclusão
O Salmo 114 é um convite poético à lembrança e reverência. Ele transforma eventos históricos em lições espirituais eternas. Ao ler este salmo, eu aprendo que não basta ser liberto: é preciso viver como povo separado para Deus. O mesmo Deus que fez o mar fugir e a rocha jorrar ainda age hoje, libertando e sustentando. Como cristão, sou chamado a viver com temor, gratidão e confiança.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 105–109.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1223–1228.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 717–718.