O Salmo 55 é atribuído a Davi e carrega marcas profundas de angústia, perseguição e traição. Apesar de o texto não mencionar explicitamente o momento histórico, muitos intérpretes ligam sua composição à revolta de Absalão, filho de Davi, e à traição de Aitofel, um de seus conselheiros mais próximos. Esse episódio está registrado em 2 Samuel 15–17 e se encaixa perfeitamente na atmosfera de dor, conflito interno e decepção descrita pelo salmista.
Por outro lado, João Calvino sugere que o salmo talvez tenha sido escrito em um período anterior, durante as perseguições de Saul, quando Davi se encontrava cercado por traições em um contexto igualmente turbulento (CALVINO, 2009, p. 457). Independentemente do cenário exato, o salmo reflete um momento em que a confiança humana foi despedaçada e somente a esperança em Deus permaneceu.
A tradição judaica e cristã também percebe neste salmo ecos da paixão de Cristo, sobretudo por sua relação com a traição de Judas. Como salmo didático (conforme o subtítulo hebraico: “Masquil”), ele visa não apenas expressar sentimentos, mas instruir espiritualmente.
A alma em tormento (Sl 55:1–3)
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“Escuta a minha oração, ó Deus, não ignores a minha súplica.” (v. 1)
Davi inicia com uma súplica direta, sem rodeios. Ele clama com urgência. A angústia que transparece em sua voz revela que ele está cercado de inimigos e desamparado. Os versículos seguintes detalham o tormento interior: pensamentos perturbadores, barulho de ameaças, e a crescente hostilidade de seus adversários. O salmista não está apenas sob ataque físico, mas emocional e espiritual.
Segundo Calvino, esse clamor brota de um santo experimentado, que não é fraco ou efeminado, mas alguém que já demonstrou coragem, e mesmo assim, está sendo esmagado pela aflição (CALVINO, 2009, p. 458). Ao ler esses versículos, eu percebo como até os crentes mais fortes podem experimentar o colapso emocional diante da injustiça.
Desejo de fuga (Sl 55:4–8)
“O meu coração está acelerado; os pavores da morte me assaltam.” (v. 4)
O salmista descreve uma crise de pânico. O desejo de voar como uma pomba e fugir da tempestade é comovente. Como cristão, entendo esse impulso. Há dias em que o coração quer apenas escapar da dor. Mas a vida de fé não permite fuga sem propósito. O deserto que Davi menciona representa um lugar de aparente paz, ainda que isolado.
Derek Kidner observa que o desejo de Davi por asas de pomba revela a tensão entre o desespero e a busca por refúgio espiritual. Elias teve o mesmo sentimento (1 Reis 19), assim como Jeremias (Jr 9:2).
A cidade corrompida (Sl 55:9–11)
“Destrói os ímpios, Senhor, confunde a língua deles.” (v. 9)
Davi roga para que Deus destrua a confusão e a violência que invadiram Jerusalém. A linguagem remete ao episódio de Babel (Gn 11), sugerindo que apenas a intervenção divina poderia desarticular os planos perversos.
A cidade, que deveria ser um lugar de justiça e segurança, tornou-se o palco da opressão e do engano. Spurgeon comenta que “a cidade santa havia se tornado um covil da maldade”. O mal havia tomado as ruas, as muralhas e até os templos.
Para mim, essa seção revela a dor de ver um ambiente sagrado sendo profanado por ambições humanas. O que era sagrado foi corrompido, e isso parte o coração do salmista.
A dor da traição (Sl 55:12–15)
“Mas logo você, meu colega, meu companheiro, meu amigo chegado.” (v. 13)
Esse trecho é o coração emocional do salmo. Davi revela que a ferida mais profunda veio de alguém que era íntimo, um companheiro de oração e de adoração. Isso se alinha com a descrição de Aitofel, que compartilhou dos conselhos espirituais de Davi e depois se aliou a Absalão.
João Calvino vê aqui uma das expressões mais intensas da dor humana. O golpe do inimigo é esperado. O golpe do amigo, não. (CALVINO, 2009, p. 465). E quando ocorre, desestabiliza tudo.
A referência à sepultura aberta e ao castigo imediato é uma evocação do julgamento sobre Corá, Datã e Abirão (Nm 16). O desejo de Davi por justiça divina é fervoroso, mas não pessoal. Ele fala em nome da santidade traída.
A confiança no Deus que ouve (Sl 55:16–19)
“Eu, porém, clamo a Deus, e o Senhor me salvará.” (v. 16)
Essa virada é notável. Depois de relatar tanto sofrimento, Davi reafirma sua confiança. Ele ora à tarde, de manhã e ao meio-dia (v. 17). Isso mostra sua perseverança e disciplina espiritual. Como cristão, eu sou lembrado aqui de que devo manter a oração constante, especialmente em tempos de crise.
O versículo 18 afirma que Deus guarda o salmista “ileso na batalha”. Isso não significa ausência de ataques, mas a preservação da alma em meio ao caos. Como afirmou Hernandes Dias Lopes, “Davi sabe que Deus é capaz de introduzir seu povo numa situação pacífica mesmo quando seus oponentes sejam tantos” (LOPES, 2022, p. 599).
O bajulador traiçoeiro (Sl 55:20–21)
“Macia como manteiga é a sua fala, mas a guerra está no seu coração.” (v. 21)
Davi volta a descrever a duplicidade do traidor. Suas palavras são doces, mas suas intenções são mortais. Spurgeon compara esse tipo de pessoa à hiena que fala como homem, mas age como lobo. A traição espiritual é ainda mais dolorosa porque profana o nome de Deus.
Esse retrato é compatível com Judas Iscariotes, o discípulo que beijou Jesus e, ao mesmo tempo, o entregou. O texto aponta para algo mais profundo: o perigo da religião sem arrependimento, da aparência sem verdade.
Confiança final e juízo divino (Sl 55:22–23)
“Entregue suas preocupações ao Senhor, e ele o susterá.” (v. 22)
Davi fecha com conselhos que ecoam por gerações. Ao invés de carregar o fardo da vingança ou da angústia, ele entrega tudo nas mãos de Deus. O verbo “suster” carrega a ideia de sustento contínuo, como o de José que alimentou sua família no Egito (Gn 45:11), segundo Kidner.
Ele então profetiza que os traidores serão lançados na cova da destruição. A linguagem aponta para juízo definitivo. Ao contrário dos justos, que são sustentados, os ímpios não viverão metade de seus dias. Tanto Aitofel quanto Judas se enforcaram (2 Sm 17:23; Mt 27:5), confirmando a seriedade do texto.
Cumprimento das profecias
O Salmo 55 antecipa a experiência de Jesus com Judas. Ambos foram traídos por amigos íntimos, com quem tinham comunhão espiritual. O verso 14 (“você, com quem eu partilhava agradável comunhão”) encontra eco em João 13:18, quando Jesus diz: “Aquele que partilha do meu pão voltou-se contra mim.”
Além disso, a entrega das preocupações ao Senhor (v. 22) é uma antecipação do ensino de Pedro: “Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês” (1 Pedro 5:7).
A profecia da morte súbita e trágica dos ímpios se cumpre literalmente em Judas e simbolicamente em todos que se afastam da aliança com Deus.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 55
- Asas de pomba (v. 6) – Simbolizam o desejo de liberdade e refúgio. A pomba, animal puro, busca esconderijo. Davi deseja escapar da dor com inocência.
- Sepultura viva (v. 15) – Imagem de juízo imediato e sem retorno. Remete a Corá, Datã e Abirão (Nm 16).
- Palavras como manteiga e azeite (v. 21) – Representam bajulação e dissimulação. Doces na forma, mas cortantes como punhais.
- Entrega das preocupações (v. 22) – Representa a confiança ativa em Deus. Um convite à dependência total, à semelhança do Salmo 37:5.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 55
- A dor da traição é real, mas Deus permanece fiel – Davi foi traído por alguém próximo, mas encontrou em Deus consolo e justiça.
- A oração constante é nosso refúgio em tempos de crise – Clamar de manhã, ao meio-dia e à tarde é um caminho seguro de paz.
- A maldade pode parecer triunfante por um tempo, mas será julgada – Deus não ignora a violência e a fraude.
- Devemos confiar a Deus nossas angústias – A ansiedade pode nos esmagar, mas a confiança em Deus nos sustenta.
- A fidelidade de Deus é o que garante nossa estabilidade – Ainda que abalados, não seremos destruídos.
- Deus julga os que quebram alianças espirituais – A aliança com Deus é sagrada, e traí-la traz consequências.
Conclusão
O Salmo 55 é um grito de dor e fé. Ele nasce da experiência de um homem traído por alguém que caminhava com ele até a casa de Deus. Davi nos mostra que a fé verdadeira não ignora o sofrimento, mas o apresenta diante do Senhor. Eu aprendo que, mesmo cercado de inimigos e decepções, posso entregar minhas preocupações a Deus e descansar em sua justiça. Sua fidelidade é o abrigo mais seguro para os que, como a pomba, desejam apenas um lugar de paz.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Organização de Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Tradução de Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 2, p. 457–476.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Organização de Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 593–602.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução de Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 693–694.