O Salmo 56 foi escrito por Davi em um dos momentos mais delicados de sua vida. O título do salmo, conforme o texto hebraico, informa que se refere ao período “quando os filisteus o prenderam em Gate” (1 Samuel 21:10–15). Ao fugir da fúria de Saul, Davi procurou refúgio entre os filisteus, justamente na cidade natal de Golias, a quem ele havia derrotado anos antes. A decisão revela o nível de desespero em que ele se encontrava.
Naquela cidade hostil, Davi foi reconhecido e, com medo de ser morto, fingiu-se de louco. Esse episódio revela a tensão entre fé e medo que marca profundamente este salmo. Davi se viu cercado de perigos, acuado entre o rei insano de Israel e os inimigos filisteus. Apesar disso, sua confiança em Deus permaneceu.
O Salmo 56 é classificado como um miktam, um tipo de salmo que pode denotar “poema dourado” ou “escrito oculto”, e era possivelmente entoado em momentos de grande crise. A designação musical “sobre a pomba silenciosa em lugares distantes” pode indicar uma melodia conhecida ou uma metáfora da condição de Davi: frágil, longe de casa e exposto aos perigos. Ele se compara a uma pomba em exílio, calada e oprimida (CALVINO, 2009, p. 477).
Este salmo se move do lamento à confiança, da angústia à gratidão, e carrega ecos de outros textos bíblicos, como o livro de Jó e os cânticos de aflição de Jeremias. Ele também antecipa temas presentes no Novo Testamento, como a confiança no cuidado pessoal de Deus e a certeza da redenção.
O clamor do oprimido (Salmo 56:1–2)
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Davi inicia o salmo pedindo misericórdia: “Tem misericórdia de mim, ó Deus”. Ele está sendo pressionado por homens que o atacam e o oprimem sem cessar. O versículo 2 reforça a ideia de perseguição contínua: “os meus inimigos pressionam-me sem parar”. A opressão não vem apenas de fora (os filisteus), mas também de seu próprio povo (Saul e seus aliados).
Segundo Hernandes Dias Lopes, “a misericórdia de Deus é a única fonte de todas as nossas esperanças e promessas” (LOPES, 2022, p. 607). Em meio à perseguição, Davi reconhece que somente Deus pode lhe oferecer refúgio. Como cristão, eu aprendo que, mesmo quando todos parecem se voltar contra mim, posso clamar por socorro àquele que ouve e se compadece.
A confiança no meio do medo (Salmo 56:3–4)
Davi admite sentir medo: “Mas eu, quando estiver com medo, confiarei em ti”. Ele não tenta esconder sua fragilidade, mas a transforma em confiança. Spurgeon comenta que “somos homens, portanto sujeitos à derrota. Somos fracos, portanto incapazes de evitá-la. Somos pecadores, portanto merecedores dela” (LOPES, 2022, p. 608).
No verso 4, Davi declara: “Em Deus, cuja palavra eu louvo, em Deus eu confio, e não temerei. Que poderá fazer-me o simples mortal?” Essa pergunta retórica é um ato de fé. Ele encara seus adversários com os olhos fixos na promessa divina. Calvino observa que Davi “triunfa sobre suas apreensões através daquela confiante esperança de salvação” (CALVINO, 2009, p. 482).
A maldade dos inimigos (Salmo 56:5–7)
Davi descreve a intensidade da perseguição: seus inimigos distorcem suas palavras, tramam sua destruição, se escondem e o espreitam. Ele se sente vigiado, acuado, como um animal encurralado.
Spurgeon observa que “os pecadores são seres gregários. Os perseguidores caçam em bandos” (LOPES, 2022, p. 608). Além disso, segundo Calvino, os ímpios “nutrem a ideia de que têm permissão para perpetrarem impunemente a pior perversidade” (CALVINO, 2009, p. 484).
Davi clama por justiça: “Na tua ira, ó Deus, derruba as nações”. Sua oração é uma súplica por intervenção divina. Ele reconhece que só Deus pode pôr fim à maldade.
O cuidado do divino Protetor (Salmo 56:8–11)
O versículo 8 é uma das declarações mais comoventes do salmo: “Registra, tu mesmo, o meu lamento; recolhe as minhas lágrimas em teu odre; acaso não estão anotadas em teu livro?” A imagem do odre transmite a ideia de um cuidado pessoal, quase artesanal. Cada lágrima de Davi é preciosa aos olhos de Deus.
Segundo Walton, Matthews e Chavalas, “esse repositório escrito é comparado a recolher as lágrimas do sofredor em um odre” (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018, p. 694). A linguagem usada aqui remete ao conceito do “livro da vida” (Sl 69:28), reforçando a certeza de que Deus não esquece os que lhe pertencem.
Davi continua sua confissão de fé: “Confio em Deus, cuja palavra louvo […] que poderá fazer-me o homem?” (v. 10–11). Ele se fortalece em meio ao sofrimento ao lembrar-se da fidelidade de Deus. Como cristão, eu aprendo que as lágrimas não passam despercebidas e que posso caminhar com confiança mesmo sem respostas imediatas.
O cumprimento dos votos (Salmo 56:12–13)
Davi reconhece que fez votos ao Senhor e se compromete a cumpri-los: “Cumprirei os votos que te fiz, ó Deus; a ti apresentarei minhas ofertas de gratidão”. Os votos não são esquecidos após o livramento. Gratidão exige memória.
Calvino explica que Davi se considerava “obrigado com os votos que ele havia feito” e que a natureza de seu voto era “render louvores” (CALVINO, 2009, p. 488). O salmo termina com uma declaração de propósito: “Pois me livraste da morte e os meus pés de tropeçarem, para que eu ande diante de Deus na luz que ilumina os vivos.”
Essa luz é símbolo da vida, da comunhão e da presença divina. Como cristão, eu desejo caminhar nessa luz, longe da escuridão do medo, da mentira e da vingança.
Cumprimento das profecias
O Salmo 56, embora não contenha uma profecia messiânica direta, aponta para verdades que se cumprem plenamente em Cristo. O tema do sofrimento justo, da confiança em Deus, da vigilância divina e da redenção são amplamente desenvolvidos no Novo Testamento.
A imagem das lágrimas recolhidas por Deus e o registro das dores do justo ecoam nas palavras de Jesus: “Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados” (Mateus 5:4). Além disso, o clamor por justiça, presente neste salmo, antecipa o clamor dos mártires em Apocalipse 6:10.
Cristo é o verdadeiro Justo perseguido que confiou em Deus até o fim, mesmo na cruz. Ele é o cumprimento da promessa de que Deus ouve, salva e redime.
Significado dos nomes e simbolismos
- Odre das lágrimas – símbolo do cuidado íntimo de Deus. Representa a preservação da dor como parte da história de fé do justo.
- Livro de Deus – ideia de um registro celestial, onde os feitos e sofrimentos dos justos estão anotados. Conecta-se ao conceito do “livro da vida”.
- Pomba silenciosa em lugares distantes – provável metáfora para o próprio Davi, exilado e frágil, clamando por livramento.
- Votos – compromissos espirituais feitos em oração. Não são votos místicos, mas expressões de confiança e gratidão.
- Luz dos vivos – expressão poética para descrever a vida plena diante de Deus, em contraste com a sombra da morte e da opressão.
Lições espirituais e aplicações práticas
- Podemos ter fé mesmo quando sentimos medo
Davi mostra que medo e fé podem coexistir. A diferença está em para onde olhamos quando tememos. - Deus se importa com nossas lágrimas
Nenhuma dor passa despercebida. O Senhor recolhe nossas lágrimas e registra cada passo da nossa peregrinação. - A confiança deve ser firmada na Palavra de Deus
Louvar a Palavra é crer na promessa, mesmo quando tudo ao redor parece desabar. - Devemos cumprir os votos feitos na dor
Muitos fazem promessas a Deus nos momentos difíceis. Cumpri-las revela gratidão e maturidade. - A presença de Deus é melhor que a ausência de problemas
Mesmo cercado por inimigos, Davi declara: “Deus está comigo”. Isso basta. - A fidelidade de Deus deve nos conduzir à adoração
Davi não terminou o salmo com desespero, mas com louvor. A salvação produz gratidão duradoura.
Conclusão
O Salmo 56 é um retrato vívido da luta entre o medo e a fé. Davi se vê rodeado por inimigos, traído, acuado, e ainda assim ele escolhe confiar. Ao ler este salmo, eu sou lembrado de que confiar em Deus não significa ausência de dor, mas presença de esperança. As lágrimas não são esquecidas, os passos não são ignorados, e os votos não são em vão.
Deus é aquele que recolhe, registra, responde e redime. Que nossa fé se fortaleça como a de Davi, não por ausência de perigos, mas por causa da presença constante do Senhor.
Referências
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução de Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 694.
- CALVINO, João. Salmos. Organização de Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira. Tradução de Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 2.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Organização de Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.