O Salmo 57 é atribuído a Davi e está vinculado ao período em que ele fugia da perseguição de Saul. O título do salmo informa que foi composto “quando fugiu de Saul para a caverna”. Isso remete ao episódio registrado em 1 Samuel 22:1, quando Davi se refugiou na caverna de Adulão. Nesse tempo, ele já havia sido ungido rei por Samuel, mas ainda não havia tomado posse do trono. Saul, dominado por ciúmes e paranoia, perseguia Davi com fúria.
Esse cenário coloca o salmo num contexto de profundo sofrimento pessoal. Davi está escondido, cercado por inimigos violentos, e sua vida está por um fio. No entanto, o salmo se divide em duas partes distintas: a primeira é uma súplica angustiada (vv. 1–6) e a segunda, um louvor confiante (vv. 7–11). Isso mostra a transformação interior do salmista: da ansiedade à adoração.
João Calvino observa que “a repetição da súplica por misericórdia mostra a intensidade da aflição de Davi e sua completa entrega à proteção divina” (CALVINO, 2009, p. 491). Ele compara a confiança de Davi à imagem da sombra das asas de Deus, um símbolo recorrente na tradição bíblica de proteção e aliança.
O salmo também possui ligação com o Salmo 56, tanto pela proximidade histórica quanto pelo conteúdo temático. Ambos iniciam com um clamor por misericórdia e terminam com declarações de confiança no livramento divino. Além disso, a segunda parte do Salmo 57 (vv. 7–11) é repetida quase integralmente em Salmo 108:1–5, mostrando a importância dessa porção como um cântico de louvor.
Refúgio nas asas de Deus (Sl 57.1–3)
>>> Insreva-se em nosso Canal no YouTube
“Misericórdia, ó Deus; misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia.” (v. 1)
O salmo começa com uma súplica sincera. Davi não reivindica direitos, mas implora por misericórdia. A repetição enfatiza sua angústia e dependência total de Deus. O verbo refugiar-se aponta para uma ação contínua: “Eu me refugiarei à sombra das tuas asas, até que passe o perigo”. Essa imagem evoca o cuidado protetor de Deus, como a águia que cobre seus filhotes (cf. Dt 32:11).
Segundo Walton, Matthews e Chavalas, “essa metáfora era comum no antigo Oriente Próximo e está ligada aos atos redentores da aliança” (WALTON et al., 2018, p. 694). A sombra das asas também pode remeter à cobertura dos querubins sobre a Arca da Aliança (Êx 25:20), símbolo da presença divina.
No verso 2, Davi declara: “Clamo ao Deus Altíssimo, a Deus, que para comigo cumpre o seu propósito.” A expressão Deus Altíssimo aponta para a soberania divina sobre todas as circunstâncias. A confiança de Davi está no Deus que cumpre Seus planos, mesmo em meio ao caos.
Calvino comenta que “a palavra hebraica usada aqui, gomer, transmite a ideia de que Deus aperfeiçoa a obra que começou” (CALVINO, 2009, p. 492). Isso oferece consolo ao coração aflito: Deus não abandona o processo, Ele completa o que iniciou.
O versículo 3 revela a expectativa do livramento sobrenatural: “Dos céus ele me envia a salvação… Deus envia o seu amor e a sua fidelidade.” O contraste entre céu e terra mostra que a esperança de Davi não está nos recursos humanos, mas na intervenção divina.
Cercado por inimigos ferozes (Sl 57.4–6)
“Estou em meio a leões, ávidos para devorar…” (v. 4)
Aqui, Davi retrata a violência de seus perseguidores. Eles são comparados a leões com dentes como lanças e flechas, e línguas como espadas afiadas. A ameaça é física e verbal. A perseguição não se limita à espada de Saul, mas também às calúnias e traições.
Calvino enfatiza que “as calúnias lançadas contra ele foram uma das provações mais dolorosas” (CALVINO, 2009, p. 494). No verso 5, há uma pausa na narrativa com um clamor: “Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus! Sobre toda a terra esteja a tua glória!” Mesmo em meio ao perigo, Davi adora. Ele tira os olhos da caverna e os eleva aos céus.
O verso 6 revela as armadilhas preparadas pelos inimigos: “Abriram uma cova no meu caminho, mas foram eles que nela caíram.” Essa reviravolta é comum na literatura sapiencial e expressa a justiça divina: o mal cai sobre a cabeça dos que o tramam. Hernandes Dias Lopes comenta que “os perversos amiúde caem presa de suas próprias tramas” (LOPES, 2022, p. 620).
O louvor triunfante de um coração firme (Sl 57.7–11)
“Meu coração está firme, ó Deus, meu coração está firme; cantarei ao som de instrumentos!” (v. 7)
A segunda metade do salmo contrasta com a primeira. O lamento dá lugar ao louvor. Davi afirma que seu coração está firme – duas vezes. Essa firmeza não vem das circunstâncias, mas da confiança em Deus. Calvino destaca que “o coração pronto contrasta com a apatia dos que adoram apenas com os lábios” (CALVINO, 2009, p. 495).
Davi desperta sua alma e seus instrumentos para o louvor: “Acorde, minha alma! Acordem, harpa e lira! Vou despertar a alvorada!” (v. 8). Em vez de ser acordado pelo dia, Davi quer ser aquele que desperta a manhã com cânticos. Como cristão, eu aprendo que o louvor pode nascer antes do livramento completo – basta um coração firmado na fidelidade de Deus.
Nos versículos 9 e 10, Davi amplia o alcance do louvor: “Eu te louvarei entre as nações; cantarei teus louvores entre os povos.” Ele não se limita à sua experiência pessoal, mas antecipa um louvor universal. Isso tem implicações messiânicas.
O verso 10 resume a motivação do salmista: “Pois o teu amor é tão grande que alcança os céus; a tua fidelidade vai até às nuvens.” Amor e fidelidade são os pilares da aliança divina, e motivam nosso louvor, mesmo em tempos de dor.
O salmo se encerra repetindo o estribilho do verso 5: “Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus! Sobre toda a terra esteja a tua glória!” Agora, não é mais um clamor em meio à dor, mas uma exaltação confiante após experimentar o livramento.
Cumprimento das profecias
O Salmo 57, embora não contenha uma profecia direta messiânica, aponta para a missão universal de Deus e se conecta com o Novo Testamento. Paulo cita esse tipo de expressão em Romanos 15:9, ao falar do louvor entre os gentios, como cumprimento da promessa de que Cristo seria glorificado entre todas as nações.
Além disso, a linguagem usada por Davi – “te louvarei entre as nações” (v. 9) – antecipa a missão messiânica de alcançar os povos. Essa visão de um louvor global, mesmo em tempos de adversidade, ecoa a obra de Cristo, que, em meio ao sofrimento, glorificou o Pai (Jo 17:1–4).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 57
- Deus Altíssimo (El Elyon) – Refere-se ao Deus soberano, que governa sobre todas as circunstâncias. Sua autoridade está acima de qualquer ameaça humana.
- Sombra das tuas asas – Simboliza proteção, aliança e abrigo. É uma imagem de intimidade e segurança, presente em textos como Salmo 91:4.
- Cova e rede – Representam armadilhas, ciladas tramadas pelos inimigos. A queda dos inimigos na própria armadilha simboliza o juízo de Deus.
- Harpa e lira – Instrumentos associados ao louvor no culto israelita. O uso desses elementos mostra que a adoração é completa – envolve coração, voz e ação.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 57
- Refúgio verdadeiro está em Deus, não nas circunstâncias
Davi se escondeu numa caverna, mas seu verdadeiro abrigo era o Senhor. Como cristão, aprendo que minha segurança não está em estratégias humanas, mas na fidelidade de Deus. - A oração transforma o lamento em louvor
Ao clamar, Davi foi elevado acima do medo. A oração sincera nos tira da paralisia do desespero e nos conduz à adoração. - Mesmo antes da vitória, podemos cantar
O coração firme de Davi o levou a louvar antes mesmo da libertação completa. Eu também posso louvar no escuro, sabendo que a alvorada virá. - A justiça de Deus reverte as tramas do mal
Os inimigos de Davi caíram em suas próprias armadilhas. Deus é justo. Ele defende os seus e frustra os planos dos perversos. - Nosso louvor deve alcançar as nações
Mesmo escondido, Davi já sonhava com a glória de Deus entre os povos. Eu também sou chamado a viver com essa visão missionária. - A fidelidade de Deus sustenta o coração abatido
O amor e a fidelidade de Deus se estendem até os céus. Isso me dá esperança em meio às incertezas.
Conclusão
O Salmo 57 é um retrato honesto da alma que sofre, mas escolhe confiar. Escrito no interior de uma caverna, ele nos ensina que não é o lugar físico que define nossa realidade, mas a presença de Deus. Como cristão, eu aprendo que o louvor é mais forte que o medo, e que mesmo em meio ao caos, posso erguer os olhos e proclamar: “Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus!”
Assim como Davi, somos convidados a transformar nossas cavernas em altares e nossos gemidos em canções. O Deus que envia misericórdia e fidelidade dos céus é o mesmo que sustenta seus servos hoje. E se Ele cumpre Seus propósitos mesmo nos dias escuros, então podemos confiar plenamente, cantar com coragem e viver com esperança.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 2, p. 490–498.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 615–622.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 694.