O Salmo 71 é uma súplica fervorosa de um ancião que se encontra diante de um grave perigo. Embora não traga título nem identificação do autor, muitos estudiosos associam seu conteúdo a Davi, especialmente no contexto da rebelião de Absalão.
Essa hipótese é sustentada por comentaristas como João Calvino, Matthew Henry e Charles Spurgeon, que observam paralelos entre as expressões de aflição do salmista e a crise vivida por Davi na velhice (CALVINO, 2009, p. 45).
A estrutura do salmo combina súplica, confiança e louvor, articulando uma teologia da fidelidade de Deus ao longo da vida. Diferente de outros salmos que falam da juventude ou da meia-idade, aqui encontramos a perspectiva de um servo idoso, que clama por livramento com base no relacionamento contínuo com Deus desde o ventre materno.
O salmo também é único no Livro 2 (Salmos 42–72) por não conter título. Derek Kidner destaca que isso amplia o apelo universal do texto: qualquer crente, especialmente os mais velhos, pode identificá-lo como oração pessoal. Sua linguagem mistura memórias, orações, promessas e louvores. Como observa Hernandes Dias Lopes, “há uma brandura e serenidade nesse salmo que é característico de uma vida longa vivida na dependência de Deus” (LOPES, 2022, p. 755).
Clamor e confiança no Deus da juventude (Sl 71:1–4)
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“Em ti, Senhor, busquei refúgio; nunca permitas que eu seja humilhado” (v. 1)
O salmista inicia com um apelo urgente. Ele não começa pedindo proteção, mas declarando sua confiança. Ao buscar refúgio no Senhor, afirma que só Deus pode impedir sua humilhação.
A oração continua com pedidos específicos: livramento, resgate, salvação (v. 2). Tudo isso é baseado na justiça de Deus, não nos méritos do orante. Isso me ensina que minha oração não depende da minha performance, mas do caráter do Senhor.
No verso 3, ele pede que Deus seja sua “rocha de refúgio” – expressão que aparece também em Salmos 31:2-3. A ideia é de estabilidade, proteção e acesso contínuo: “para onde eu sempre possa ir”.
O verso 4 fecha essa seção com um grito: “Livra-me, ó meu Deus, das mãos dos ímpios”. A repetição do tema mostra a intensidade da aflição e da confiança.
Memória da fidelidade passada (Sl 71:5–8)
“Pois tu és a minha esperança, ó Soberano Senhor, em ti está a minha confiança desde a juventude” (v. 5)
Ao ler este trecho, percebo que a fé do salmista não nasceu na crise. Ela foi construída ao longo de uma vida. Ele recorre à sua história com Deus como âncora para sua esperança atual.
No verso 6, reconhece que dependia de Deus desde o ventre materno. Isso me lembra que a fidelidade de Deus precede até mesmo nossa consciência. A vida, desde o início, está nas mãos do Criador.
O verso 7 mostra que ele se tornou “um exemplo para muitos”. A palavra hebraica usada pode também significar “portento” – algo que causa admiração ou temor. Ele era visto como alguém marcado pela ação incomum de Deus.
“Do teu louvor transborda a minha boca” (v. 8) – o louvor aqui não é obrigação, mas resposta natural. O coração cheio de confiança se torna uma boca cheia de gratidão.
A súplica do idoso abandonado (Sl 71:9–13)
“Não me rejeites na minha velhice; não me abandones quando se vão as minhas forças” (v. 9)
Este é um dos versos mais comoventes do salmo. O salmista reconhece suas limitações físicas e clama por não ser descartado. Envelhecer pode ser solitário. Mas o clamor de quem teme a Deus é: “Não me abandones”.
Os versículos 10 e 11 expõem o juízo cruel dos inimigos: “Deus o abandonou”. Quantas vezes o sofrimento do justo é interpretado como sinal de rejeição divina? Essa teologia do mérito é desfeita pela oração do salmista, que sabe que mesmo na aflição, Deus está presente.
Nos versos 12 e 13, a súplica se intensifica. O salmista pede que Deus se apresse e confunda os adversários. Ele sabe que o Senhor pode inverter a vergonha em honra.
Esperança renovada no meio da aflição (Sl 71:14–18)
“Mas eu sempre terei esperança e te louvarei cada vez mais” (v. 14)
Aqui a oração vira louvor. Apesar da opressão, ele escolhe a esperança. E, mais que isso, se compromete com o louvor contínuo.
Nos versículos 15 e 16, ele fala da justiça e dos feitos poderosos de Deus. Interessante notar que ele admite não conseguir contar todos os atos divinos: “ainda que eu não saiba o seu número”.
O verso 17 conecta a juventude com o presente: “Desde a minha juventude tens me ensinado”. O louvor agora é fruto de uma jornada longa com Deus. No verso 18, ele não pede vida longa apenas por amor à vida, mas para continuar ensinando à nova geração a força de Deus. Como cristão, isso me inspira a viver com propósito até o fim.
O Deus que restaura da morte (Sl 71:19–21)
“Tua justiça chega até as alturas, ó Deus, tu, que tens feito coisas grandiosas. Quem se compara a ti?” (v. 19)
A grandeza de Deus é incomparável. O salmista reconhece isso e, em seguida, confessa: “Tu, que me fizeste passar muitas e duras tribulações, restaurarás a minha vida” (v. 20). Ele não nega a dor, mas crê na restauração.
O versículo 21 aponta para um futuro promissor: “Tu me farás mais honrado e mais uma vez me consolarás”. Mesmo na velhice, há esperança de consolo e honra.
Louvor contínuo ao Deus fiel (Sl 71:22–24)
“E eu te louvarei com a lira por tua fidelidade, ó meu Deus” (v. 22)
O salmista termina com louvor. A fidelidade de Deus é o motivo. Ele menciona instrumentos – lira e harpa – usados no culto de Israel.
No verso 23, ele se alegra por ter sido redimido. E no verso 24, sua língua continua proclamando a justiça de Deus. Os que o queriam envergonhar foram frustrados.
Cumprimento das profecias
O Salmo 71 não traz uma profecia messiânica direta como Salmo 22, mas seus temas dialogam com o Novo Testamento.
O versículo 20, que fala de ser restaurado das profundezas da terra, pode ser entendido como uma alusão à ressurreição. Embora não seja uma profecia explícita, aponta para a esperança de vida após a morte, tema que se cumpre plenamente em Cristo.
A expressão “redimiste” (v. 23) conecta-se ao papel redentor de Jesus, que também foi rejeitado, mas exaltado. Ele é a rocha eterna (1 Coríntios 10:4), o verdadeiro refúgio em todas as fases da vida.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 71
- Soberano Senhor (Adonai Yahweh) – Destaca a soberania de Deus sobre todas as coisas, inclusive o tempo e a história.
- Rocha de refúgio – Um símbolo de proteção, estabilidade e acesso contínuo. Deus não é apenas abrigo, é abrigo constante.
- Portento (v. 7) – No contexto, refere-se ao espanto que a vida do salmista causava, como um sinal visível do agir divino. Pode ser tanto positivo quanto negativo.
- Profundezas da terra (v. 20) – Uma figura da morte e do desespero, da qual o salmista espera ser levantado.
- Santo de Israel (v. 22) – Expressão rara nos Salmos, mas frequente em Isaías. Destaca o caráter puro e distinto de Deus.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 71
- A fidelidade de Deus não expira com a idade – O salmista nos mostra que mesmo na velhice, Deus continua presente e atuante.
- A oração é o recurso mais poderoso do crente – Em todas as fases da vida, é possível buscar refúgio em Deus.
- Nossa história com Deus é nosso maior argumento – O salmista apela para sua trajetória com Deus como base para sua esperança.
- As provações não anulam a graça – Mesmo após muitas tribulações, o salmista espera consolo e honra.
- Velhice não é fim, é missão – Ele deseja viver mais para ensinar às próximas gerações a fidelidade do Senhor.
- O louvor deve ser contínuo, não circunstancial – Ele canta no meio da crise, na velhice, após tribulações.
- Deus é nossa rocha – ontem, hoje e amanhã – Um abrigo constante, em quem podemos confiar desde o ventre até os cabelos brancos.
Conclusão
O Salmo 71 é uma oração profunda de alguém que conheceu Deus por toda a vida. É o clamor de quem envelheceu na fé e não perdeu a esperança. Ao ler esse salmo, aprendo que a caminhada com Deus não tem prazo de validade. Cada estação da vida revela novos aspectos da fidelidade divina.
Em tempos de fraqueza, Deus é força. Em dias de esquecimento, Ele é memória. Na velhice, Ele não nos abandona, mas renova a esperança. Que possamos, como esse salmista, viver e envelhecer com o coração cheio de louvor e os lábios cheios de gratidão.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 45–63.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.