O Salmo 74 é um lamento nacional atribuído a Asafe, ou melhor, à linhagem dos filhos de Asafe, levitas encarregados da adoração em Israel. O cenário retratado é devastador: o templo de Jerusalém foi destruído, os santuários profanados e o povo de Deus levado ao cativeiro.
Esse contexto corresponde à invasão de Jerusalém pelos babilônios em 586 a.C., quando Nabucodonosor saqueou e incendiou o templo (2 Reis 25:8-10).
Teologicamente, o salmo expressa o choque espiritual do povo diante do juízo divino. Ele clama a Deus com perguntas dolorosas: “Por que nos rejeitaste?” e “Por que permaneces em silêncio?”. João Calvino observa que se trata de um maskil, um salmo instrutivo, que conduz à reflexão sobre a infidelidade do povo e o zelo do Senhor por seu nome (CALVINO, 2009, p. 125).
Hernandes Dias Lopes lembra que “esse salmo foi escrito em lágrimas” (LOPES, 2022, p. 803). É a voz de um povo que sente ter perdido não só sua terra e templo, mas também o favor de Deus. No entanto, mesmo diante da desolação, o salmo é uma prece fundamentada na aliança, como se vê também em Salmos 89, outro lamento por aparente quebra da promessa divina.
1. O abandono sentido por Israel (Sl 74:1–3)
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“O Deus, por que nos rejeitaste definitivamente?” (v. 1)
O salmista sente-se abandonado. Ele apela à memória da aliança, lembrando que o povo foi adquirido por Deus, redimido e separado para Si (v. 2). A menção a “Monte Sião” relembra o lugar da presença divina, hoje em ruínas. Assim como em Salmos 79, o autor roga que Deus volte seu olhar ao santuário destruído (v. 3).
Calvino comenta que esse apelo se ancora na fidelidade de Deus, não nos méritos do povo. A ideia de Deus “voltar os passos” evoca o desejo de que Ele intervenha novamente, como nos dias da libertação do Egito (CALVINO, 2009, p. 128).
2. O templo profanado e destruído (Sl 74:4–8)
“Teus adversários gritaram triunfantes bem no local onde te encontravas conosco” (v. 4)
A cena descrita é de violação sagrada. Os inimigos entram no templo como lenhadores invadindo a floresta, derrubam a estrutura com machados e colocam fogo em tudo. As “bandeiras” hasteadas no santuário (v. 4) representam os deuses pagãos, numa afronta direta ao Senhor. John Walton observa que esse gesto era um modo de declarar que a divindade local havia sido derrotada (WALTON et al., 2018, p. 701).
Como cristão, eu me entristeço ao imaginar que o local da presença de Deus virou ruínas. A destruição descrita aqui lembra a dor vista em Lamentações 1, onde Jerusalém chora seu abandono.
3. O silêncio de Deus e a ausência de sinais (Sl 74:9–11)
“Não há mais profetas, e nenhum de nós sabe até quando isso continuará.” (v. 9)
O desespero se aprofunda: não há sinais, milagres ou direção. Deus parece mudo. Esse silêncio divino é interpretado como ausência de perdão e disciplina severa. O salmista suplica: “Por que reténs a tua mão direita?” (v. 11), ou seja, por que o braço do poder de Deus está recolhido?
Calvino argumenta que essa queixa, embora intensa, não é falta de fé. Ao contrário, ela brota do coração de quem ainda crê que Deus pode agir (CALVINO, 2009, p. 134). O mesmo clamor aparece em Salmos 10:1, onde o salmista pergunta: “Por que estás tão longe, Senhor?”
4. O Deus que salva e reina (Sl 74:12–17)
“Tu, ó Deus, és o meu rei desde a antiguidade” (v. 12)
Essa seção rompe o lamento com uma afirmação de fé. O salmista lembra que Deus é Rei desde a eternidade e Senhor sobre a criação. Ele cita feitos antigos: a abertura do mar (v. 13), a derrota do Leviatã (v. 14), a abertura de fontes (v. 15) e o domínio sobre o dia e a noite (v. 16).
A figura do Leviatã representa o caos. Walton explica que, no mundo antigo, derrotar o Leviatã era sinal de que uma divindade havia estabelecido ordem sobre o caos (WALTON et al., 2018, p. 702). Como em Salmos 29, o domínio de Deus sobre as águas é símbolo de soberania absoluta.
5. O apelo fundamentado na aliança (Sl 74:18–23)
“Dá atenção à tua aliança” (v. 20)
O salmo termina com um clamor fundamentado não na justiça do povo, mas na aliança divina. A pomba (v. 19) representa o povo frágil e indefeso. O salmista pede que Deus não se esqueça dos pobres, dos necessitados e dos fiéis oprimidos (v. 21).
O versículo 22 é poderoso: “Levanta-te, ó Deus, e defende a tua causa”. O povo sofre, mas o motivo maior do clamor é a afronta contra o nome de Deus. Como em Salmos 83, o zelo pela glória divina motiva a intercessão.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 74 não contenha profecias messiânicas explícitas, ele aponta para a necessidade de um novo templo e uma nova aliança. Essa esperança é cumprida em Jesus Cristo. Em João 2:19–21, Jesus se apresenta como o verdadeiro templo, dizendo: “Destruam este templo, e eu o levantarei em três dias”.
Além disso, o domínio de Deus sobre o caos e o Leviatã aponta para o Cristo vitorioso do Apocalipse 12, que derrota o dragão. O silêncio de Deus, sentido aqui, é também superado na encarnação, quando Deus falou por meio do Filho (Hebreus 1:1–2).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 74
- Asafe – Nome hebraico que significa “ajuntador”. Designa uma linhagem de levitas músicos e profetas.
- Leviatã – Símbolo mitológico do caos e da oposição ao governo de Deus. Representa o mal em escala cósmica.
- Pomba (rola) – Símbolo de inocência, fragilidade e dependência. Representa o povo de Deus.
- Estandartes e bandeiras – Simbolizam dominação e conquista. Apontam para a profanação do templo.
- Mão direita de Deus – Representa poder e ação. Quando retraída, transmite silêncio e disciplina.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 74
- Deus pode parecer silencioso, mas nunca está ausente – Mesmo quando não ouvimos sua voz, Ele permanece soberano.
- A destruição visível não anula a aliança invisível – O templo caiu, mas a aliança de Deus permanece firme.
- Devemos orar pelo nome de Deus, não apenas por nossas dores – O salmista intercede mais por causa da afronta contra o Senhor do que por si mesmo.
- O passado da fé alimenta o presente da dor – Lembrar os feitos de Deus ajuda a manter a esperança.
- Mesmo a ruína pode nos levar a uma fé mais pura – Quando tudo rui, resta-nos a fé no Deus que tudo pode restaurar.
- Jesus é o templo que não pode ser destruído – Em Cristo, temos segurança, redenção e habitação eterna.
Conclusão
O Salmo 74 é um grito de dor, mas também uma declaração de fé. Ele não nega a devastação, mas clama ao Deus da aliança, o Rei eterno que derrotou o caos e que não se esquece do seu povo. Como cristão, aprendo que mesmo nas ruínas, posso confiar na fidelidade de Deus. Ele não está indiferente à zombaria dos ímpios nem ao sofrimento dos fiéis. E quando tudo parece silencioso, sua Palavra encarnada em Jesus Cristo continua a falar: “Eu sou o templo verdadeiro, o Deus presente, o Rei invencível”.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 125–149.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 803–810.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 701–702.