O Salmo 76 é atribuído a Asafe e está inserido entre os cânticos de confiança e exaltação do poder de Deus. Ele celebra uma vitória sobrenatural concedida por Deus ao seu povo. Embora não haja consenso absoluto sobre o evento exato ao qual o salmo se refere, a maioria dos estudiosos concorda que seu pano de fundo histórico é o livramento de Jerusalém do cerco assírio liderado por Senaqueribe, rei da Assíria, por volta de 701 a.C. (2 Reis 19:35–36; Isaías 37:36–38). Esse episódio culmina com a morte de 185 mil soldados assírios em uma única noite, por meio da intervenção do Anjo do Senhor.
Hernandes Dias Lopes aponta que esse salmo se divide em duas partes: a primeira relembra um livramento passado; a segunda antecipa um julgamento futuro (LOPES, 2022, p. 821). Ele ressalta a natureza teocrática do hino, que exalta Deus como Rei absoluto, cuja morada está em Sião e cujo domínio se estende sobre toda a terra.
João Calvino também concorda com essa leitura histórica e observa que o objetivo principal do salmista é destacar o cuidado contínuo de Deus com a sua Igreja, incentivando os fiéis a confiarem na sua proteção (CALVINO, 2009, p. 161).
Deus é conhecido em sua fortaleza (Salmo 76:1–3)
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“Em Judá Deus é conhecido; o seu nome é grande em Israel. Sua tenda está em Salém; o lugar da sua habitação está em Sião. Ali quebrou ele as flechas reluzentes, os escudos e as espadas, as armas de guerra.” (vv. 1–3)
O salmista inicia com uma afirmação teológica forte: Deus é conhecido e grande entre o seu povo. Como cristão, aprendo que a intimidade com Deus não depende apenas de palavras, mas da manifestação concreta do seu poder. Salém e Sião são referências a Jerusalém, a cidade escolhida por Deus para habitar no meio do seu povo. O verso 3 descreve a intervenção divina na guerra. Deus não apenas protege, mas desarma o inimigo. Essa imagem ecoa Isaías 54:17: “Nenhuma arma forjada contra você prevalecerá.”
Calvino destaca que o poder de Deus foi claramente exibido quando os inimigos foram frustrados por uma interposição milagrosa. Para ele, o povo nada fez para obter tal livramento, pois toda a glória pertence a Deus (CALVINO, 2009, p. 163).
Deus é vitorioso contra seus inimigos (Salmo 76:4–6)
“Resplendes de luz! És mais majestoso que os montes cheios de despojos. Os homens valorosos jazem saqueados, dormem o sono final; nenhum dos guerreiros foi capaz de erguer as mãos. Diante da tua repreensão, ó Deus de Jacó, o cavalo e o carro estacaram.” (vv. 4–6)
O verso 4 exalta a superioridade de Deus sobre qualquer poder humano. As montanhas de despojos, provavelmente uma metáfora para as nações guerreiras, são ofuscadas pela glória divina. Os guerreiros poderosos dormem o sono da morte, incapazes de reagir.
Ao ler esses versículos, percebo que o Senhor é quem dá e retira o vigor dos homens. A expressão “dormem o sono final” indica que o poder de Deus paralisa qualquer força hostil. Calvino afirma que “toda a força dos inimigos foi aniquilada, e mesmo seus cavalos e carros tornaram-se inúteis diante da repreensão divina” (CALVINO, 2009, p. 167).
Deus é temido por causa de seu juízo (Salmo 76:7–10)
“Somente tu és temível. Quem poderá permanecer diante de ti quando estiveres irado? Dos céus pronunciaste juízo, e a terra tremeu e emudeceu, quando tu, ó Deus, te levantaste para julgar, para salvar todos os oprimidos da terra. […] Até a tua ira contra os homens redundará em teu louvor.” (vv. 7–10)
Aqui o salmista expande a visão: o julgamento divino não está limitado a Israel. O Senhor se levanta dos céus e sua voz cala a terra. Como cristão, isso me lembra que Deus não age apenas em benefício do seu povo, mas também em justiça contra toda a opressão.
Hernandes Dias Lopes destaca que o juízo divino tem múltiplos propósitos: glorificar a Deus, punir os ímpios e salvar os humildes (LOPES, 2022, p. 826). Já Calvino acrescenta que “a ira dos homens será restringida ou usada por Deus para exaltar a sua glória”, apontando o exemplo de Faraó no Êxodo como paralelo (CALVINO, 2009, p. 171). Isso também se conecta a Atos 2:23, que mostra como a ira humana cumpriu os propósitos de Deus na crucificação de Jesus.
Deus é digno de ser obedecido (Salmo 76:11–12)
“Façam votos ao Senhor, ao seu Deus, e não deixem de cumpri-los; que todas as nações vizinhas tragam presentes a quem todos devem temer. Ele tira o ânimo dos governantes e é temido pelos reis da terra.” (vv. 11–12)
A conclusão do salmo é um convite à adoração responsável. Quem experimenta a libertação de Deus deve responder com fidelidade. Como cristão, entendo que meu louvor precisa ser acompanhado de compromisso. Cumprir os votos feitos ao Senhor é sinal de honra ao seu nome.
Calvino lembra que “a gratidão deve ser expressa não apenas com palavras, mas com atitudes contínuas e visíveis” (CALVINO, 2009, p. 172). O verso 12 mostra que Deus quebra o orgulho dos líderes mais poderosos. O Senhor é Rei acima de todos os reis. Isso me lembra do que diz o Salmo 2: “Beijai o Filho, para que não se ire.”
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 76 não contenha profecias diretas sobre o Messias, ele antecipa temas centrais do Novo Testamento. A imagem de Deus se levantando para julgar e salvar os humildes (v. 9) encontra eco nas palavras de Jesus sobre o Reino de Deus, que exalta os humildes e derruba os poderosos (Lucas 1:52).
Além disso, o uso da expressão “Deus de Jacó” aponta para a continuidade da aliança que, segundo Paulo, culmina em Cristo (Romanos 9:6–8). A humilhação dos líderes soberbos (v. 12) também se alinha ao ensino de Apocalipse, onde os reis da terra são julgados por se oporem ao Cordeiro (cf. Apocalipse 19:19–21).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 76
- Judá e Israel: Representam o povo da aliança. Embora politicamente divididos, espiritualmente são uma unidade diante de Deus.
- Salém e Sião: Referem-se a Jerusalém. Salém é o nome antigo da cidade (Gênesis 14:18), e Sião representa o centro espiritual do reinado divino (cf. Salmo 48).
- Montes de despojos: Símbolo dos impérios que se exaltam por meio de guerras.
- Sono final: Imagem da morte repentina e irreversível dos inimigos de Deus.
- Carros e cavalos: Referência ao poder militar, como em Salmo 20:7: “Uns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós confiamos no nome do Senhor.”
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 76
- Deus se revela no meio do seu povo – O salmo começa com a afirmação de que Deus é conhecido em Judá. Assim como o Salmo 46 mostra Deus como refúgio, aqui Ele é mostrado como presença ativa e protetora.
- A proteção de Deus é mais eficaz que qualquer estratégia humana – A vitória não veio por armas, mas por intervenção divina. Isso reforça o ensino de Salmo 33:16–17.
- Deus julga com justiça e salva os humildes – O Senhor não é neutro. Ele se levanta para defender os oprimidos.
- A soberania de Deus transforma até o mal em louvor – Mesmo a fúria dos inimigos será usada por Deus para a sua glória.
- A obediência é a resposta esperada diante da graça – Cumprir votos ao Senhor é reconhecer sua fidelidade.
- Reis e governantes estão sob o domínio de Deus – Nenhuma autoridade se mantém sem a permissão do Altíssimo.
Conclusão
O Salmo 76 é um hino que celebra a vitória, mas também adverte sobre o juízo divino. Ele convida à confiança, reverência e obediência. Como cristão, eu sou encorajado a lembrar que, mesmo diante de ameaças externas, Deus reina sobre tudo e todos. Sua intervenção pode vir de forma silenciosa ou estrondosa, mas sempre será justa, poderosa e salvadora.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.