O Salmo 77 é atribuído a Asafe, um dos principais levitas responsáveis pela música no culto de Israel, segundo registros como 1 Crônicas 6:39. Ele integra uma coletânea de salmos (73–83) ligados a Asafe, provavelmente compostos por ele e por seus descendentes.
O contexto exato deste salmo não é informado. Contudo, o tom de lamentação, a ausência de consolo e a referência à redenção do povo sugerem que foi escrito em meio a uma grave crise nacional — possivelmente durante o exílio babilônico ou no período posterior ao retorno, quando a restauração completa ainda parecia distante. João Calvino observa que “os lamentos e gemidos aqui expressos são do povo eleito, não apenas de um indivíduo” (CALVINO, 2009, p. 174).
Teologicamente, o salmo nos conduz por uma jornada do desespero à esperança. Ele mostra a luta de fé de alguém que ora sem respostas, recorda os feitos de Deus no passado e, com esforço, renova sua confiança. O salmo não apenas expressa dor, mas oferece um modelo de como buscar a Deus quando as emoções estão confusas e a fé vacilante.
1. A angústia que clama (Sl 77:1–3)
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O salmista inicia com uma súplica intensa: “Clamo a Deus por socorro; clamo a Deus que me escute”. A repetição revela persistência e desespero. No verso 2, ele menciona que, mesmo durante a noite, “estendo as mãos sem cessar”, uma imagem de oração contínua e desesperada. Ainda assim, ele diz: “a minha alma está inconsolável”. O consolo não vem, apesar do esforço. Isso reflete situações em que oramos, mas Deus parece em silêncio.
No verso 3, ele se lembra de Deus e suspira. A meditação, em vez de trazer alívio, o faz desfalecer. Como cristão, eu aprendo que a oração nem sempre trará respostas imediatas ou conforto automático. Há momentos em que o simples lembrar de Deus causa mais angústia, especialmente quando temos a sensação de que Ele se afastou.
2. Silêncio, insônia e reflexão (Sl 77:4–6)
Nos versos seguintes, o salmista descreve sua insônia: “Não me permites fechar os olhos”. Ele está inquieto, perturbado, sem palavras. Em vez de alívio, sua mente é tomada por lembranças. Ele rememora os “dias que se foram” e suas antigas canções. O contraste entre o passado glorioso e o presente sombrio aprofunda sua dor.
Calvino observa que “quando ele buscou conforto em todas as direções, não pôde encontrar nenhum que amenizasse a amargura de suas tristezas” (CALVINO, 2009, p. 182). Essa reflexão aponta para a complexidade da fé em tempos de crise: lembrar-se de dias melhores pode agravar o sofrimento, mas também prepara o terreno para a recuperação.
3. O coração em conflito (Sl 77:7–10)
Aqui vemos seis perguntas retóricas carregadas de dor: “Irá o Senhor rejeitar-nos para sempre?”, “Acabou-se a sua promessa?”, “Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?”. Essas perguntas revelam uma alma em crise espiritual.
Hernandes Dias Lopes destaca que “essas perguntas confrontam nossa fé” (LOPES, 2022, p. 831). São dúvidas comuns a todos os que caminham com Deus e enfrentam longos períodos de silêncio divino. O verso 10 marca uma virada: “Então pensei: a razão da minha dor é que a mão direita do Altíssimo não age mais”. Ele reconhece seu desalento, mas essa percepção o impulsiona a olhar para trás e relembrar quem Deus é.
4. Memória que restaura (Sl 77:11–15)
A partir do verso 11, começa a transição. Ele afirma: “Recordarei os feitos do Senhor”. Isso não é uma lembrança emocional, mas uma decisão racional. Ele escolhe deliberadamente se lembrar das obras de Deus no passado. A repetição nos versos 11 e 12 indica um esforço intencional para sair da desesperança.
O verso 13 exalta a santidade e a grandeza de Deus: “Teus caminhos, ó Deus, são santos. Que deus é tão grande como o nosso Deus?” O contraste entre sua dor e o poder de Deus começa a renovar sua fé. No verso 14, ele reconhece: “Tu és o Deus que realiza milagres”. Ao fazer isso, sua visão muda da dor para a confiança.
Como cristão, eu aprendo que a memória dos feitos de Deus é um antídoto poderoso contra o desespero. Não basta sentir — é preciso lembrar, meditar e confiar.
5. A redenção e o poder de Deus (Sl 77:16–20)
Os versos finais exaltam o poder redentor de Deus. O salmista descreve poeticamente a libertação do Egito e a travessia do mar Vermelho. As águas temem, os céus trovejam, a terra treme (vv. 16–18). É uma cena grandiosa do Deus que intervém na história. Mesmo quando “ninguém viu as tuas pegadas” (v. 19), Ele estava presente, conduzindo seu povo.
O verso 20 conclui com ternura: “Guiaste o teu povo como a um rebanho pela mão de Moisés e de Arão”. Deus não apenas liberta com poder, mas também conduz com cuidado. Essa imagem pastoral fecha o salmo com esperança.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 77 não contenha uma profecia messiânica direta, ele ecoa temas cumpridos plenamente em Cristo. A experiência de sofrimento, oração sem resposta e angústia profunda encontra paralelo na oração de Jesus no Getsêmani (Hebreus 5:7). Ele também clamou em agonia, foi ouvido, mas passou pela cruz.
Além disso, o livramento do povo de Deus no Êxodo, exaltado nos versos finais, prefigura a redenção definitiva realizada por Jesus. Assim como Deus abriu o mar, Jesus abriu o caminho para a salvação eterna (João 14:6).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 77
- Asafe – Significa “ajuntador” ou “coletor”. Ele foi líder da adoração em Israel e seus salmos expressam forte sensibilidade espiritual e consciência coletiva.
- Destra do Altíssimo – Refere-se ao poder de Deus em ação. No Antigo Testamento, a “mão direita” simboliza força, autoridade e libertação.
- As águas te viram – Uma personificação poética. As águas, símbolo de caos, estremecem diante da presença de Deus. Isso aponta para a soberania divina sobre os elementos e forças da natureza.
- Vereda no mar – Indica a intervenção sobrenatural de Deus. Ele cria caminhos onde não há, simbolizando livramento milagroso.
- Guiaste o teu povo como a um rebanho – A figura do pastor, recorrente na Bíblia, aponta para cuidado, direção e provisão. Deus é o verdadeiro Pastor de Israel, como enfatizado em Salmo 23.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 77
- A fé verdadeira persevera mesmo quando não há consolo – O salmista continua orando mesmo sem respostas. Eu aprendo que devo buscar a Deus mesmo quando tudo em mim quer desistir.
- A lembrança do passado pode ser um recurso espiritual poderoso – Recordar as obras de Deus alimenta a esperança. É um exercício de fé.
- Dúvidas não são pecado, mas um convite ao aprofundamento – As perguntas do salmista revelam uma fé viva, que luta para se firmar em Deus.
- Deus continua presente mesmo quando está invisível – “Ninguém viu as tuas pegadas”, mas Ele guiava seu povo. Assim também, em meio à crise, posso confiar que Ele está comigo.
- A grandeza de Deus é maior do que a intensidade da dor – O salmista vence o desespero ao contemplar a majestade de Deus.
- Deus age com poder, mas também com ternura – Ele redime com braço forte, mas guia com mão de pastor.
Conclusão
O Salmo 77 nos ensina a orar quando a alma está ferida, a lembrar quando o presente se mostra escuro e a confiar mesmo sem ver. Ele não apresenta uma solução imediata, mas traça um caminho de restauração espiritual: clamar, recordar, meditar e, enfim, confiar. Como cristão, eu aprendo que a fé madura não ignora a dor, mas a enfrenta com coragem e memória. A esperança renasce não por uma mudança de circunstâncias, mas por uma mudança de perspectiva: do eu para Deus, da crise para o cuidado, do presente para o eterno.
Assim como o salmista, posso afirmar: “Recordarei os feitos do Senhor; recordarei os teus antigos milagres”. A história da redenção passada é minha âncora no presente e minha esperança para o futuro.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira, trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009–2012. v. 3, p. 174–194.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 829–836.