O Salmo 83 é atribuído a Asafe, um dos principais músicos e profetas levíticos da época de Davi e Salomão. Ele aparece com destaque em 1 Crônicas 6:39 e teve um papel importante na adoração do templo. Este é o último salmo com sua autoria no Saltério e está inserido entre os salmos chamados imprecatórios, por conter orações contra os inimigos do povo de Deus.
O pano de fundo histórico do Salmo 83 não é mencionado de forma explícita, mas várias teorias surgem com base na lista de nações mencionadas. Hernandes Dias Lopes argumenta que o cenário mais próximo é o ataque contra Judá durante o reinado de Josafá, quando uma coalizão de edomitas, moabitas e amonitas tentou destruir Jerusalém (2Cr 20:1–22). No entanto, o texto é mais amplo do que esse evento isolado, o que leva estudiosos como Derek Kidner a considerarem que este salmo representa um conflito mais simbólico, refletindo a constante oposição do mundo contra o povo de Deus (LOPES, 2022, p. 893).
Walton, Matthews e Chavalas observam que a menção à Assíria pode sugerir um período posterior, entre os séculos 9 e 8 a.C., quando essa potência começou a invadir territórios a oeste e a formar alianças forçadas com outras nações da região (WALTON et al., 2018, p. 705). Isso indica que o salmo pode ter sido escrito à luz de diversos conflitos reais que cercaram Israel e Judá, sem necessariamente se restringir a um único evento.
Calvino, por sua vez, aceita a possibilidade de que este salmo tenha sido composto no tempo de Josafá, mas destaca que a oração nele contida possui valor universal para a Igreja em qualquer época, pois expressa a experiência constante de ser cercada por inimigos, visíveis e invisíveis (CALVINO, 2009, p. 325).
1. O silêncio de Deus e o clamor dos santos (Sl 83:1)
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“Ó Deus, não te emudeças; não fiques em silêncio nem te detenhas, ó Deus.” (v. 1)
O salmo começa com uma súplica urgente. O salmista implora para que Deus não permaneça em silêncio diante da crescente ameaça contra o seu povo. O silêncio divino é, para quem sofre, uma das mais angustiantes experiências.
Calvino observa que “se Deus pretendia socorrer os fiéis, cumpria-lhe fazê-lo depressa, do contrário a oportunidade de fazê-lo poderia perder-se” (CALVINO, 2009, p. 325). Essa angústia tem origem na certeza de que sem o agir de Deus, Israel está vulnerável.
Ao ler esse versículo, eu me lembro de momentos em que esperei respostas e me perguntei se Deus estava ouvindo. Como cristão, aprendo que clamar com intensidade é sinal de fé, não de desespero.
2. A conspiração dos inimigos (Sl 83:2–8)
“Vê como se agitam os teus inimigos… tramam contra aqueles que são o teu tesouro.” (vv. 2–3)
O salmista vê os inimigos de Israel como inimigos do próprio Deus. Eles tramam a destruição total da nação: “Vamos destruí-los como nação, para que o nome de Israel não seja mais lembrado” (v. 4).
Segundo Hernandes Dias Lopes, essa é uma expressão do ódio espiritual que o mundo nutre contra o povo de Deus. Ele afirma: “o mal é intolerante com o bem” (LOPES, 2022, p. 894). Isso fica claro na união dessas dez nações contra Israel, incluindo Edom, Moabe, Amom, os ismaelitas, os hagarenos, a Filístia e até a Assíria.
Os comentaristas históricos observam que essa lista cobre nações ao leste, sul, oeste e norte de Judá — um cerco total. A menção à Assíria, segundo Walton, mostra que essa ameaça não era apenas regional, mas também imperial (WALTON et al., 2018, p. 705).
Calvino ressalta que os inimigos da Igreja são também inimigos de Deus, e que “o bem-estar do povo de Deus não pode ser assaltado sem que, ao mesmo tempo, se faça injúria à sua majestade” (CALVINO, 2009, p. 326). Isso me lembra que cada ataque espiritual que enfrentamos é, em última instância, um ataque contra o próprio Cristo, como Paulo aprendeu em Atos 9:4.
3. A memória da intervenção divina (Sl 83:9–12)
“Trata-os como trataste Midiã, como trataste Sísera e Jabim no rio Quisom…” (v. 9)
O salmista recorre ao passado como argumento de fé. Ele se lembra de como Deus derrotou inimigos como Midiã (Juízes 6–8) e Sísera (Juízes 4). Essas vitórias ocorreram por meio de líderes improváveis como Gideão e Débora, e com recursos limitados.
Calvino comenta: “Deus sabiamente delonga seu auxílio a seus servos sob opressão para que, quando reduzidos a extremo máximo, ele surgisse de maneira miraculosa” (CALVINO, 2009, p. 327). Ao lembrar dessas histórias, o salmista renova sua esperança.
Ao ler esses versículos, eu me lembro de como Deus já agiu poderosamente em minha vida quando parecia não haver saída. Como cristão, aprendo que a fé se alimenta da memória da fidelidade divina.
4. A oração por juízo e conversão (Sl 83:13–18)
“Cobre-lhes de vergonha o rosto até que busquem o teu nome, Senhor.” (v. 16)
A última parte do salmo traz um clamor intenso para que Deus intervenha de forma devastadora contra os inimigos. A linguagem é forte: “fa-los como folhas secas… como fogo… como tempestade”. Mas o objetivo final não é apenas destruição, é que reconheçam o nome do Senhor.
Calvino pondera que “o conhecimento em pauta é meramente aquele de um caráter evanescente”, como o de Faraó no Egito — uma submissão forçada, e não uma conversão genuína (CALVINO, 2009, p. 328). Ainda assim, essa submissão mostra que ninguém pode resistir para sempre à soberania de Deus.
O versículo final é uma das declarações mais poderosas do salmo: “Saibam eles que tu, cujo nome é Senhor, somente tu, és o Altíssimo sobre toda a terra” (v. 18). O propósito é claro: Deus deve ser reconhecido como único Senhor sobre tudo e todos.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 83 não contenha profecias messiânicas explícitas, ele aponta para a batalha espiritual que culmina no Novo Testamento. A oposição à nação de Israel se transforma, em Cristo, na perseguição contra a Igreja.
Jesus mesmo disse: “Se o mundo os odeia, tenham em mente que antes me odiou” (João 15:18). O clamor para que Deus se manifeste contra os inimigos ecoa em Apocalipse 6:10: “Até quando, ó Soberano, santo e verdadeiro, esperarás para julgar os habitantes da terra e vingar o nosso sangue?”
A afirmação final de que “somente tu és o Altíssimo sobre toda a terra” é retomada em Filipenses 2:10–11, onde todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é Senhor.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 83
- Edom, Moabe, Amom – Nações descendentes de Esaú e Ló, parentes próximos de Israel, mas frequentemente inimigos. Simbolizam a traição de falsos irmãos.
- Sísera e Jabim – Representam a opressão militar e a derrota humilhante diante do poder de Deus.
- En-Dor – Local simbólico de derrota completa, onde os inimigos se tornaram “esterco para a terra”.
- Folhas secas, fogo, tempestade – Imagens de juízo divino repentino e irresistível.
- Nome do Senhor (YHWH) – Representa a singularidade, eternidade e soberania absoluta de Deus. Calvino explica que “existir, ou realmente ser, é no mais estrito sentido aplicável a Deus somente” (CALVINO, 2009, p. 329).
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 83
- O silêncio de Deus não é ausência, mas convite à oração – Em tempos de ameaça, clamar com intensidade é um ato de fé.
- O povo de Deus sempre enfrentará oposição organizada – O mundo não tolera a presença da verdade. Mas Deus é nosso defensor.
- Recordar o passado nos fortalece no presente – Ao lembrar como Deus agiu, nossa confiança se renova.
- Os inimigos da Igreja são, em última análise, inimigos de Deus – A batalha é espiritual, e Deus não se manterá neutro.
- A vergonha pode ser o caminho para o arrependimento – Mesmo que momentânea, a humilhação pode revelar a soberania divina.
- O nome de Deus será conhecido em toda a terra – Todo joelho se dobrará, mesmo que muitos o façam contra a vontade.
- A justiça divina é certa, ainda que demore – Assim como no passado, Deus julgará os opressores da sua Igreja.
Conclusão
O Salmo 83 é uma oração intensa, nascida da urgência e da dor. Ele revela um povo cercado por inimigos e sustentado pela fé no Deus que já agiu poderosamente no passado. Ele mostra que os conflitos de Israel não eram apenas políticos, mas espirituais. Ao ler esse salmo, eu me lembro de que a Igreja, hoje, continua cercada por forças que desejam apagá-la. Mas também me lembro de que temos um Deus que não silenciará para sempre. Ele se levantará, e seu nome será conhecido por toda a terra.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 325–329.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 893–895.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 705–706.