O Salmo 88 é atribuído a Hemã, o ezraíta, identificado como um dos homens mais sábios da época de Salomão (1Rs 4:31) e também como levita músico nos tempos de Davi (1Cr 15:17-19). Ele pertence aos filhos de Corá, um grupo ligado ao ministério da música no templo.
Porém, ao contrário de outros salmos coraítas, como o Salmo 84, que exalam esperança e alegria na presença de Deus, o Salmo 88 é denso, sombrio e termina sem qualquer nota de alívio.
Este salmo é um lamento individual, escrito num momento de intensa angústia. O título inclui a expressão “Machalate”, que pode indicar uma melodia fúnebre ou uma referência à enfermidade. A ausência de esperança final o torna único entre os salmos de lamento.
Hernandes Dias Lopes observa que “este é o único salmo de lamento que termina sem esperança. Ele começa com dor e termina em trevas” (LOPES, 2022, p. 943). João Calvino destaca que “ao ser afligido de forma tão dolorosa, Hemã foi levantado como exemplo para toda a Igreja” (CALVINO, 2009, p. 386). A teologia desse salmo nos ajuda a compreender que a fé verdadeira também atravessa períodos de silêncio e dor persistente, como vemos também em Salmo 13.
1. Clamor persistente nas trevas (Sl 88:1–2)
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“Senhor, Deus que me salva, a ti clamo dia e noite!” (v. 1)
Hemã começa seu lamento reconhecendo quem é Deus: o Senhor que salva. Mesmo no meio da dor, ele mantém viva sua fé. Seu clamor é contínuo — de dia e de noite.
Calvino comenta que “ao aplicar a designação ‘Deus da minha salvação’, Hemã colocou um freio em sua dor e fechou a porta ao desespero” (CALVINO, 2009, p. 387). Diferente de muitos que murmuram, ele derrama sua dor diante de Deus.
Ao ler esse trecho, lembro-me de que em tempos de angústia, a oração não precisa ser eloquente, mas honesta. Como no Salmo 102, a sinceridade é mais preciosa que qualquer fórmula.
2. Sofrimento até os ossos (Sl 88:3–5)
“Tenho sofrido tanto que a minha vida está à beira da sepultura!” (v. 3)
A dor do salmista é intensa e prolongada. Ele sente que está prestes a morrer. Suas forças se esvaem. Sua alma está farta de males. Ele se vê como um cadáver esquecido por Deus.
Segundo Calvino, “as muitas mortes com que se achava ameaçado lhe pareciam sepulturas prestes a tragá-lo” (CALVINO, 2009, p. 389). E como diz Hernandes, “ele está farto como quem se encheu de comida até explodir — mas de sofrimento” (LOPES, 2022, p. 945).
O tom desse lamento ecoa o clamor de outros servos de Deus, como o profeta Elias em 1 Reis 19, que também pediu a morte. A dor prolongada pode fazer até os fiéis mais fortes desanimarem.
3. A prisão escura da alma (Sl 88:6–9)
“Puseste-me na cova mais profunda, na escuridão das profundezas” (v. 6)
Hemã compreende que Deus é o autor soberano da sua provação. Ele não atribui sua dor ao acaso ou a Satanás. Para ele, Deus o colocou nessa “prisão”, o afastou dos amigos e o deixou como um leproso solitário.
Calvino destaca que “quanto mais perto do juízo divino o profeta percebia estar, mais amarga se tornava sua tristeza” (CALVINO, 2009, p. 390). A ausência de amigos e a prisão emocional tornam tudo ainda mais difícil.
Essa solidão aparece também em Jó 19, onde Jó lamenta que seus amigos e familiares o abandonaram. Como cristão, aprendo que há momentos em que apenas Deus pode ser nosso refúgio — mesmo quando Ele parece em silêncio.
4. Argumentos em meio à dor (Sl 88:10–12)
“Acaso mostras as tuas maravilhas aos mortos?” (v. 10)
O salmista inicia uma série de perguntas retóricas. Se ele morrer, como testemunhará os feitos de Deus? Como anunciará sua fidelidade no Abismo da Morte?
Segundo Hernandes, “Hemã argumenta que sua morte privaria Deus de mais uma testemunha nesta terra” (LOPES, 2022, p. 949). Kidner acrescenta que a morte é o fim do louvor público — o alvo de Deus não é a morte, mas a ressurreição.
Esse tipo de argumento também aparece em Salmo 6, onde o salmista pergunta: “Na morte, quem te louvará?”. A Bíblia reconhece que a existência terrena é o palco principal onde o testemunho da graça deve brilhar.
5. A dor crônica e a ausência de Deus (Sl 88:13–18)
“Desde moço tenho sofrido e ando perto da morte” (v. 15)
O sofrimento de Hemã não é momentâneo — ele é crônico. Desde jovem, ele sente os terrores da vida. Agora, já não encontra mais consolo nem amigos. O versículo final é impactante: “as trevas são a minha única companhia”.
Calvino reconhece que “embora esse salmo termine em queixa, ele ainda é uma forma válida de oração, pois persevera em clamar mesmo sem ver esperança” (CALVINO, 2009, p. 396). Essa é a verdadeira fé: continuar orando no escuro.
O final sem resolução lembra o Salmo 74, onde o clamor se ergue em meio ao aparente abandono. Como cristão, aprendo que posso não entender meus sofrimentos, mas posso colocá-los diante de Deus, em oração.
Cumprimento das profecias
O Salmo 88 antecipa, de forma impressionante, o sofrimento do Messias. As trevas descritas por Hemã se realizam plenamente em Cristo na cruz. Jesus também orou e não recebeu resposta imediata. Ele também foi abandonado pelos amigos e envolvido por trevas físicas e espirituais (Mt 27:46).
Segundo Hernandes Dias Lopes, “há uma grande semelhança entre o sofrimento de Hemã e o de Jesus na cruz” (LOPES, 2022, p. 952). O silêncio de Deus, o abandono, o peso da ira e a ausência de consolo se cumpriram plenamente no Calvário.
Como vemos também em Isaías 53, o Servo Sofredor foi esmagado, ferido e rejeitado. Ele assumiu os sofrimentos dos homens — inclusive os de Hemã.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 88
- Hemã – Nome que significa “fiel” ou “confiável”. Sua fidelidade na dor dá sentido ao nome.
- Machalate – Palavra que pode significar “doença” ou “melodia triste”. Representa o tom sombrio do salmo.
- Trevas – Símbolo da ausência de luz, consolo e revelação. Representa o clímax da aflição.
- Cova, Abismo, Sepultura – Imagens que reforçam o distanciamento da vida, da comunidade e de Deus.
- Oração de dia e de noite – Sinal de perseverança. Mesmo na dor extrema, Hemã não cessa de buscar.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 88
- Deus permite que seus filhos passem por aflições profundas – A fé não isenta da dor. Como em Salmo 34, o justo também sofre muitas aflições.
- A oração pode continuar mesmo sem resposta – A persistência na oração é um sinal de fé, não de fraqueza.
- É possível crer mesmo sem ver – Hemã continua orando, mesmo sem sentir consolo ou esperança.
- A dor pode ser crônica, mas não é eterna – O salmo termina em trevas, mas o seguinte começa com louvor (Sl 89:1).
- Jesus passou por aflição ainda maior – Isso o torna nosso sumo sacerdote compassivo, como diz Hebreus 4:15.
- As trevas não são o fim da história – A esperança da ressurreição transcende as trevas do presente.
Conclusão
O Salmo 88 é um espelho para as almas aflitas. Ele mostra que é possível ser fiel e sofrer ao mesmo tempo. Nem sempre a dor tem fim imediato. Nem toda oração recebe resposta visível. Mas a oração que persevera no escuro é a que mais agrada a Deus.
Hemã nos ensina que orar, mesmo em trevas, é uma declaração de fé. E que mesmo quando tudo parece perdido, ainda podemos confiar no Deus da nossa salvação. Como cristão, aprendo com este salmo que a fé real não precisa de finais felizes para continuar firme.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 386–397.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 943–952.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 707.