O Salmo 129 faz parte do grupo conhecido como “Cânticos de Romagem” ou “Cânticos dos Degraus”, que vai do Salmo 120 ao 134. Esses salmos eram entoados pelos israelitas em suas peregrinações a Jerusalém, especialmente durante as três grandes festas: Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos. O Salmo 129 é o décimo dessa coleção e inaugura a última trilogia temática, a trilogia da esperança e da espera.
Seu tema central é a perseguição histórica ao povo de Deus e a fidelidade divina em preservar sua aliança. O salmista fala em nome da nação e lembra que, desde sua origem, Israel tem enfrentado opressões constantes. Apesar disso, Deus sempre esteve presente, sustentando e libertando.
Não sabemos quem escreveu este salmo nem a ocasião exata. Muitos estudiosos, como Calvino, sugerem que ele pode ter sido escrito após o retorno do exílio babilônico, num tempo em que o povo ainda enfrentava hostilidades por parte dos vizinhos (CALVINO, 2009, p. 390). Hernandes Dias Lopes, por sua vez, o situa como um hino de sobrevivência da fé em meio à dor: “o povo de Deus é sobrevivente e resiliente neste mundo hostil” (LOPES, 2022, p. 1391).
Teologicamente, o salmo afirma que a fidelidade de Deus sustenta a história da redenção. Mesmo em meio à dor, o Senhor é justo e está no controle. Ele corta as cordas da opressão e assegura que os ímpios não prevalecerão. Essa mensagem tem ecos em toda a Bíblia, desde Gênesis até Apocalipse.
1. Opressões antigas e constantes (Salmo 129:1–3)
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“Muitas vezes me oprimiram desde a minha juventude; que Israel o repita” (v. 1)
O salmo começa com um refrão enfático: “Muitas vezes me oprimiram desde a minha juventude”. A repetição reforça a intensidade e a constância das perseguições. A juventude aqui simboliza o início da história de Israel, desde a saída do Egito, passando pelas guerras em Canaã, o período dos juízes, o cativeiro e o retorno do exílio. É como se o salmista dissesse: “Desde que nascemos como povo, nunca tivemos paz duradoura”.
Calvino observa que o termo “eles” (v. 1) é genérico, intencionalmente vago, para mostrar que os inimigos do povo de Deus vêm de todas as direções e tempos (CALVINO, 2009, p. 391). Ele vê nisso uma chamada à esperança: o sofrimento é constante, mas Deus sempre sustentou a sua Igreja.
“Passaram o arado em minhas costas e fizeram longos sulcos” (v. 3)
Essa imagem é uma das mais fortes do salmo. Os inimigos são como lavradores cruéis, que usam o povo de Deus como terra a ser arada. Os sulcos nas costas representam a dor profunda, contínua e desumana. Hernandes Dias Lopes destaca que isso pode remeter ao sofrimento de Jesus, que “foi surrado com açoites que rasgavam a pele e abriam sulcos até os ossos” (LOPES, 2022, p. 1396). Essa conexão nos leva a ver o sofrimento de Cristo como o ápice do sofrimento do povo de Deus.
A imagem também remete à fragilidade de quem sofre. Somos como um campo que não resiste ao arado. Mas há um propósito: a dor não é estéril, ela prepara o solo para o fruto da fé. Como também aprendemos no Salmo 126, Deus transforma o choro em colheita.
2. O livramento do Senhor (Salmo 129:2b,4)
“Mas jamais conseguiram vencer-me […] O Senhor é justo! Ele libertou-me das algemas dos ímpios” (v. 2b, 4)
Essa é a virada do salmo. Apesar de tantas aflições, os inimigos nunca conseguiram vencer Israel. A explicação está no versículo 4: “O Senhor é justo”. O livramento vem de Deus, não da força do povo. Ele é quem corta as “cordas dos ímpios” — uma imagem de libertação completa. John H. Walton explica que os telhados em Israel eram feitos com vigas e barro. Às vezes, brotava capim ali, mas ele logo morria por não ter raízes (WALTON et al., 2018, p. 721). Essa imagem aparece no verso seguinte e aponta para a transitoriedade dos inimigos.
O texto afirma que a justiça de Deus é o alicerce da proteção do seu povo. Ele não apenas vê o sofrimento; Ele age. Calvino reforça: “Deus nunca esquece a sua justiça, a ponto de enganar a confiança de seu povo aflito” (CALVINO, 2009, p. 393).
Esse livramento também nos lembra da promessa de João 8:36: “Se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres”. É Cristo quem corta nossas amarras.
3. A frustração dos inimigos (Salmo 129:5–8)
“Retrocedam envergonhados todos os que odeiam Sião” (v. 5)
A partir do verso 5, o tom do salmo se torna imprecatório. O salmista ora contra os inimigos de Sião. Ele não busca vingança pessoal, mas pede que Deus execute justiça contra aqueles que se opõem à cidade do Senhor. Derek Kidner observa que, como Sião é a cidade de Deus, “rejeitá-la é lutar contra o próprio Deus” (apud LOPES, 2022, p. 1397). Essa linguagem também aparece em Salmo 137, quando os cativos choram por Sião.
“Sejam como o capim do terraço, que seca antes de crescer” (v. 6)
Essa comparação é rica em simbolismo. O capim dos telhados cresce rapidamente, mas não tem profundidade. Ele murcha antes mesmo de ser útil. Spurgeon comenta que “essa erva não precisa ser arrancada; ela mesma se apressa a morrer” (apud LOPES, 2022, p. 1397). Assim também são os ímpios: florescem por um tempo, mas sua destruição é certa. Eles são uma lavoura decepcionante.
“Que não enche as mãos do ceifeiro nem os braços daquele que faz os fardos” (v. 7)
Os frutos dos ímpios são inúteis. Suas obras não servem para alimentar ninguém. Purkiser comenta: “eles nunca terão utilidade alguma para o ceifeiro” (apud LOPES, 2022, p. 1398). Essa esterilidade espiritual contrasta com o que Deus promete aos justos no Salmo 1: “são como árvores plantadas à beira de águas correntes”.
Cumprimento das profecias
O Salmo 129, apesar de não conter uma profecia direta sobre o Messias, aponta de forma clara para Cristo. Ele é o que mais sofreu nas mãos dos ímpios. Suas costas foram literalmente marcadas com sulcos. Isaías diz: “Ofereci as costas aos que me feriam” (Is 50:6). E em Isaías 53:5 lemos: “Pelas suas pisaduras fomos sarados”.
Além disso, Jesus é o novo Israel. Nele se cumprem todas as promessas feitas ao povo de Deus. Ele é a Sião verdadeira, o lugar da presença divina. Seus inimigos também pareceram prosperar por um tempo, mas foram envergonhados. A cruz, que parecia derrota, foi o maior triunfo. Como diz Colossenses 2:15, “despojando os principados e potestades, os expôs publicamente ao desprezo, triunfando deles na cruz”.
Significado dos nomes e simbolismos
- Sião – Refere-se à cidade de Deus, símbolo da presença divina, da aliança e da promessa messiânica.
- Arado nas costas – Imagem vívida da opressão e sofrimento físico, espiritual e social.
- Capim do terraço – Figura da fragilidade dos ímpios, cuja vida é sem raiz e sem frutos.
- Cordas dos ímpios – Representam os vínculos de opressão e escravidão. Deus as corta com justiça.
- Ceifeiro – Símbolo de juízo e colheita. Os ímpios não produzem nada digno de ser colhido.
- Bênção dos passantes – Indica aprovação divina. Sua ausência reforça o juízo contra os ímpios.
Lições espirituais e aplicações práticas
- A dor faz parte da jornada da fé – Desde o início, o povo de Deus foi perseguido. Se isso aconteceu com Israel e com Cristo, também acontecerá conosco (2Timóteo 3:12).
- Deus é justo, mesmo quando a opressão parece vencer – Ele vê tudo e, no tempo certo, age com justiça.
- Os ímpios prosperam por pouco tempo – Como o capim do telhado, sua glória é passageira.
- Devemos entregar os inimigos a Deus – O salmista não clama por vingança pessoal, mas confia que o Senhor julgará com justiça (Romanos 12:19).
- Cristo compartilha das nossas dores – As costas marcadas de Israel apontam para as feridas do Salvador.
- A fidelidade de Deus sustenta seu povo – A história da Igreja é uma sequência de perseguições vencidas pela graça.
- Não devemos invejar o sucesso dos ímpios – Eles parecem florescer, mas não resistem ao calor do juízo.
- Somos chamados a abençoar, não a amaldiçoar – O povo de Deus deve ser canal de bênção, mesmo quando injustiçado.
Conclusão
O Salmo 129 é um testemunho de fé em meio à opressão. Ele não nega a dor, mas exalta a fidelidade de Deus. O salmista olha para trás e vê uma história marcada por sofrimento, mas também por livramentos. E olhando para o futuro, ele clama pela justiça divina. Como cristão, eu aprendo que o caminho da fé é estreito, mas seguro. Mesmo quando os sulcos são profundos, Deus corta as cordas. Mesmo quando os ímpios florescem, Deus os faz secar. A fidelidade do Senhor é nossa segurança. E como diz João 16:33: “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo.”
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 390–397.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1391–1400.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 721.