O Salmo 115 faz parte do grupo conhecido como Hallel Egípcio (Salmos 113–118), tradicionalmente entoado durante a celebração da Páscoa judaica. Essa coleção celebra a libertação do Egito e destaca o poder, a misericórdia e a fidelidade de Deus. Não há uma autoria definida no texto, mas muitos estudiosos sugerem que ele foi composto durante o período pós-exílico, quando os judeus retornaram da Babilônia e enfrentavam zombaria dos povos vizinhos.
A estrutura do salmo apresenta um forte contraste entre o Deus vivo de Israel e os ídolos inertes das nações. A linguagem do texto sugere que os fiéis estavam cercados por questionamentos e escárnio dos pagãos, perguntando “Onde está o Deus deles?” (v. 2). A resposta do salmista é teológica e litúrgica: o nosso Deus está nos céus e age com liberdade soberana (v. 3).
Segundo Hernandes Dias Lopes, “esse salmo enaltece a pessoa e o caráter do Deus de Israel em contraste com os ídolos inúteis das nações gentílicas” (LOPES, 2022, p. 1232). João Calvino também observa que “os fiéis recorrem a Deus em circunstâncias de extrema angústia, não buscando glória para si, mas para o nome do Senhor” (CALVINO, 2009, p. 95).
Na teologia do Antigo Testamento, especialmente nos períodos de perseguição ou opressão, os salmos desempenhavam o papel de reafirmar a fé e relembrar ao povo a fidelidade de Deus, fortalecendo sua identidade diante das pressões culturais e religiosas do mundo ao redor. O Salmo 115 reflete essa tensão: fé firme em um Deus invisível, diante da ostentação visível dos ídolos das nações.
1. Toda a glória pertence ao Senhor (Salmo 115:1–3)
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“Não a nós, Senhor, nenhuma glória para nós, mas sim ao teu nome, por teu amor e por tua fidelidade!” (v. 1)
A abertura do salmo já apresenta uma teologia fundamental: toda a glória pertence exclusivamente ao nome do Senhor. Ao ler este verso, sou confrontado com a tendência do meu coração de desejar reconhecimento. A resposta bíblica é clara: a glória não nos pertence. Ela deve ser dada ao nome do Senhor por causa de sua fidelidade (hesed) e verdade (emet), dois pilares da aliança divina.
O versículo 2 revela o contexto de zombaria: “Onde está o Deus deles?”. As nações olhavam para Israel e, diante do sofrimento, duvidavam da presença e do poder de Deus. É nesse momento que o salmista responde: “O nosso Deus está nos céus e pode fazer tudo o que lhe agrada” (v. 3). Essa afirmação ecoa o ensino de que Deus é soberano e age conforme sua vontade, não segundo a expectativa humana.
Como explica Calvino, “Deus, por seu eterno conselho, administra todas as coisas de tal maneira, que nada pode ser feito senão por sua vontade e designação” (CALVINO, 2009, p. 98). Essa verdade consola em tempos de dúvida e sofrimento, lembrando que a ausência de sinais visíveis não significa ausência de ação divina.
2. A inutilidade dos ídolos (Salmo 115:4–8)
“Os ídolos deles, de prata e ouro, são feitos por mãos humanas” (v. 4)
Aqui começa um dos contrastes mais marcantes da poesia hebraica. Os ídolos são descritos com boca, olhos, ouvidos, nariz, mãos e pés, mas sem qualquer funcionalidade (vv. 5–7). A linguagem é direta e até sarcástica. Os deuses das nações são inúteis. Como observa Walton, “essas imagens eram vistas como manifestações físicas da divindade, alimentadas, lavadas e vestidas, mas sem qualquer poder verdadeiro” (WALTON et al., 2018, p. 718).
Calvino reforça que “esperar assistência de uma massa sem vida é o cúmulo da insensatez” (CALVINO, 2009, p. 100). Ao ler esses versículos, eu me pergunto quantas vezes dou poder a coisas que, no fim, são tão impotentes quanto esses ídolos. Dinheiro, status, reconhecimento — todos prometem segurança, mas são mudos e surdos diante das minhas orações.
O versículo 8 conclui com um alerta severo: “Tornem-se como eles aqueles que os fazem e todos os que neles confiam”. Idolatria não é apenas ineficaz; ela corrompe. Tornamo-nos semelhantes ao que adoramos. Warren Wiersbe resume bem ao dizer: “Tornamo-nos semelhantes ao Deus que adoramos” (apud LOPES, 2022, p. 1235).
3. A confiança no Senhor é segura (Salmo 115:9–11)
“Confie no Senhor, ó Israel! Ele é o seu socorro e o seu escudo” (v. 9)
Depois de denunciar os ídolos, o salmista convoca o povo à confiança. Três grupos são chamados: Israel (v. 9), a casa de Arão (v. 10) e os que temem ao Senhor (v. 11). Isso inclui tanto os judeus quanto os prosélitos, convertidos de outras nações. Derek Kidner aponta que “a congregação se via composta por leigos, sacerdotes e tementes a Deus em geral” (apud LOPES, 2022, p. 1236).
A repetição da expressão “Ele é o seu socorro e o seu escudo” mostra que Deus protege e sustenta seu povo. Ele não é como os ídolos que precisam ser carregados. Ele é quem carrega os seus (cf. Isaías 46:3-4).
Ao ler esse trecho, eu sou lembrado de que fé não é sentimento; é decisão. Confiar no Senhor é continuar esperando, mesmo quando tudo parece silencioso.
4. Deus é generosamente abençoador (Salmo 115:12–15)
“O Senhor lembra-se de nós e nos abençoará” (v. 12)
A lembrança de Deus aqui não é apenas mental, mas ativa. Deus se lembra para agir, como em Gênesis 8:1, quando lembrou-se de Noé. Ele abençoa todas as camadas da comunidade: os israelitas, os sacerdotes e os que temem ao Senhor, “do menor ao maior” (v. 13).
Essa bênção se estende também à descendência: “Que o Senhor os multiplique, a vocês e aos seus filhos” (v. 14). É a linguagem da promessa feita a Abraão, renovada agora em oração. Como diz Hernandes Dias Lopes, “Deus mesmo é a fonte de suas bênçãos; fonte inesgotável” (LOPES, 2022, p. 1236).
Ao ler esses versículos, eu me recordo de como a fidelidade de Deus se estende além da minha geração. Isso me desafia a viver hoje de maneira que meus filhos vejam e experimentem o mesmo Deus.
5. A consagração dos vivos (Salmo 115:16–18)
“Os mais altos céus pertencem ao Senhor, mas a terra ele a confiou ao homem” (v. 16)
Deus reina no céu, mas confiou a terra à humanidade. Isso aponta para nossa responsabilidade como mordomos. Calvino observa que “Deus, satisfeito com sua própria glória, enriqueceu a terra com abundância de coisas boas” (CALVINO, 2009, p. 105).
O versículo 17 traz uma urgência: “Os mortos não louvam o Senhor”. A ideia não é negar a existência após a morte, mas afirmar que o louvor a Deus deve ser vivido enquanto estamos neste mundo. “Nós, porém, bendiremos o Senhor, desde agora e para sempre!” (v. 18). Esse compromisso é coletivo e contínuo. Louvamos enquanto respiramos, e deixamos esse legado à próxima geração.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 115 não contenha uma profecia messiânica direta, ele prepara o caminho para verdades que se cumprem em Cristo. O contraste entre o Deus vivo e os ídolos se aprofunda no Novo Testamento. Em 1 Coríntios 8:4-6, Paulo afirma que, ainda que existam muitos deuses, para nós há um só Deus, o Pai, e um só Senhor, Jesus Cristo.
Jesus é o Deus que fala, vê, ouve, sente e age. Ele é a manifestação perfeita do Deus vivo, em oposição aos ídolos sem vida. Nele, vemos o cumprimento do socorro e escudo prometido no salmo (cf. Hebreus 1:3).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 115
- “Nome do Senhor” – Representa a totalidade do ser de Deus, digno de toda a glória.
- Ídolos – Simbolizam tudo que é criado e colocado no lugar do Criador.
- Socorro e escudo – Duas imagens que falam de proteção ativa e constante.
- Bênção – Ação de Deus que promove vida, multiplicação e paz.
- Louvor dos vivos – Símbolo da missão da Igreja na terra: testemunhar a fidelidade de Deus.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 115
- Deus não divide a sua glória com ninguém – A verdadeira adoração reconhece isso.
- Adorar ídolos é se tornar como eles – A idolatria nos rouba a vida e a sensibilidade espiritual.
- Confiar em Deus é uma escolha diária – Em tempos difíceis, nossa fé é provada.
- A bênção de Deus alcança gerações – Viver com fidelidade é semear para os nossos filhos.
- O louvor dos vivos é urgente – Temos o privilégio e o dever de glorificar a Deus enquanto temos fôlego.
- Deus é ativo, mesmo quando parece silencioso – Ele está nos céus e faz tudo o que lhe agrada.
Conclusão
O Salmo 115 é um chamado à fé em meio ao silêncio e à zombaria. Ele nos desafia a rejeitar a glória própria e a confiar no Deus que reina nos céus, mesmo quando não o vemos agindo. A idolatria continua sendo um risco, ainda que disfarçada em formas modernas. Como cristão, eu aprendo que confiar no Senhor é viver com os olhos na eternidade e os pés firmes na terra, louvando-o desde agora e para sempre.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 95–108.
- LOPES, Hernandes Dias.. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1231–1238.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 718.