O Salmo 116 integra o grupo dos halel, hinos de louvor entoados nas grandes festas judaicas, especialmente na Páscoa (Sl 113–118). Por isso, é provável que este salmo tenha sido cantado por Jesus e seus discípulos na última ceia, conforme Marcos 14:26. Essa conexão litúrgica oferece uma profundidade especial ao texto, pois ele se transforma em um cântico de gratidão entoado às portas da cruz.
A autoria não é indicada no título, mas estudiosos como Hernandes Dias Lopes e Allan Harman sugerem que sua origem está ligada a um episódio de livramento, possivelmente vivido por Ezequias durante o cerco assírio e sua doença mortal (cf. Is 37–38). O tom pessoal e a estrutura do salmo apontam para uma experiência profunda de aflição e redenção, expressa em forma de testemunho público.
Calvino destaca que este salmo é um exemplo de como a oração fervorosa conduz à gratidão sincera. Ele afirma: “os fiéis, depois de experimentarem a salvação de Deus, devem não apenas agradecer em silêncio, mas declarar publicamente a bondade recebida” (CALVINO, 2009, p. 95). Já Walton, Matthews e Chavalas reforçam que ações de graças, libações e votos eram comuns no mundo antigo e sinalizavam o cumprimento de compromissos assumidos diante da divindade (WALTON et al., 2018, p. 718).
O Salmo 116, portanto, emerge como um cântico de ressurreição pessoal, uma celebração da fidelidade de Deus em tempos de morte, sofrimento e desesperança.
1. Uma oração ouvida (Sl 116:1–2)
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“Eu amo o Senhor, porque ele me ouviu quando lhe fiz a minha súplica” (v. 1)
A abertura do salmo é uma confissão de amor. Mas não se trata de um sentimento abstrato; nasce da experiência concreta de ser ouvido por Deus. O salmista fala como alguém que clama no vale e recebe resposta. Como cristão, eu aprendo que nosso amor a Deus é uma resposta ao cuidado que Ele já demonstrou por nós.
No versículo 2, o salmista declara: “Eu o invocarei toda a minha vida”. Ele não apenas olha para o passado, mas se compromete com o futuro. Deus se inclinou para ele, como um pai que abaixa para ouvir a súplica do filho. É esse cuidado que gera confiança e perseverança na oração.
2. O vale da morte e da angústia (Sl 116:3–4)
“As cordas da morte me envolveram, as angústias do Sheol vieram sobre mim” (v. 3)
O salmista descreve sua crise com imagens fortes: laços, cordas e angústias. A morte não é apenas um destino futuro, mas uma realidade que o sufoca no presente. O Sheol, na tradição hebraica, representa o lugar dos mortos. Sentir sua presença é experimentar a sombra da morte antes mesmo de morrer.
Mas o salmista não silencia. Ele clama: “Livra-me, Senhor!” (v. 4). Essa oração curta, direta e desesperada revela fé genuína. Mesmo cercado pela morte, ele não desiste de buscar socorro. Como em Salmo 18, a aflição leva à oração, e a oração leva ao livramento.
3. Deus revela quem Ele é (Sl 116:5–6)
“O Senhor é misericordioso e justo; o nosso Deus é compassivo” (v. 5)
O salmista não começa dizendo que foi livrado. Primeiro, ele afirma quem Deus é. Em meio ao caos, ele descobre o caráter divino. A misericórdia, a justiça e a compaixão não são apenas ideias teológicas; são atributos vividos.
No verso 6, lemos: “O Senhor protege os simples”. Wiersbe explica que esses “simples” não são ingênuos ou tolos, mas aqueles com fé sincera, semelhante à de uma criança (LOPES, 2022, p. 1248). O salmista reconhece sua fragilidade: “quando eu já estava sem forças, ele me salvou”. Como cristão, eu aprendo que a graça não requer força, mas fé.
4. A alma encontra descanso (Sl 116:7–9)
“Retorne ao seu descanso, ó minha alma, porque o Senhor tem sido bom para você!” (v. 7)
Este versículo é um solilóquio: o salmista conversa com a própria alma. Embora Deus já o tenha livrado, sua alma ainda está inquieta. Isso me lembra que há uma diferença entre vencer uma crise e sentir-se em paz. A alma precisa reaprender a descansar.
Davi também fala disso quando diz: “a minha alma espera somente em Deus” (Sl 62:1). O descanso não está nas circunstâncias, mas na bondade do Senhor. Ele completa: “Pois tu me livraste da morte, os meus olhos, das lágrimas e os meus pés, de tropeçar” (v. 8). A libertação é completa: espiritual, emocional e moral.
5. A fé em meio à dor (Sl 116:10–11)
“Eu cri, ainda que tenha dito: ‘Estou muito aflito’” (v. 10)
Essa confissão é poderosa. A fé não elimina a dor, mas sustenta em meio a ela. A tradução grega deste versículo inspirou Paulo a dizer: “Cri, por isso falei” (2Co 4:13). O salmista mostra que crer não é negar a realidade, mas enfrentar a dor com os olhos fixos em Deus.
No verso 11, ele diz: “Ninguém merece confiança”. Em sua perturbação, sente-se traído, sozinho. Calvino comenta que “a alma atribulada enxerga apenas futilidade ao seu redor, como se estivesse encoberta por uma densa névoa” (CALVINO, 2009, p. 98). Ainda assim, ele não desiste da fé.
6. O cálice da salvação (Sl 116:12–14)
“Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” (v. 13)
O salmista agora se pergunta: “Como posso retribuir ao Senhor toda a sua bondade para comigo?” (v. 12). A resposta é paradoxal: ele oferece gratidão. O cálice da salvação pode ser uma referência à libação, como explica Walton: “essas libações representavam a libertação promovida pela divindade e também liberavam a pessoa do compromisso do voto” (WALTON et al., 2018, p. 718).
Derek Kidner observa que esse cálice “sugere mais a dádiva de Deus ao homem do que uma oferta do homem a Deus” (LOPES, 2022, p. 1250). Tomar o cálice é reconhecer que toda salvação vem de Deus e, por isso, invocar seu nome é a maior resposta de louvor.
7. A confiança na morte e na vida (Sl 116:15–16)
“O Senhor vê com pesar a morte de seus fiéis” (v. 15)
A morte, aos olhos do mundo, é tragédia. Mas o salmista afirma que Deus valoriza a morte de seus servos. Hernandes Dias Lopes diz que “não significa que Deus se alegra com a morte, mas que a vida dos seus é preciosa demais para ser desperdiçada” (LOPES, 2022, p. 1251). A Nova Versão Internacional traduz como: “O Senhor vê com pesar…”, reforçando essa leitura.
No verso 16, o salmista reafirma sua identidade: “Sou teu servo, filho da tua serva”. Ele se vê como herdeiro da fé. Calvino explica: “essa honra me foi conferida antes mesmo do meu nascimento” (CALVINO, 2009, p. 100). E por isso diz: “quebraste as minhas correntes”. Ele é livre para servir.
8. Votos e louvor públicos (Sl 116:17–19)
“Oferecerei a ti um sacrifício de gratidão e invocarei o nome do Senhor” (v. 17)
A gratidão não fica no coração. Ela se transforma em testemunho público. O salmista quer cumprir seus votos na presença de todos. Segundo Calvino, “a única retribuição verdadeira é o louvor sincero que brota de um coração reconhecido” (CALVINO, 2009, p. 101).
Ele termina dizendo: “Aleluia!” — um grito de vitória. Deus virou sua história, e agora ele canta diante da assembleia. Como cristão, eu aprendo que devo adorar a Deus não apenas no íntimo, mas também em público, com ações e palavras.
Cumprimento das profecias
O Salmo 116 tem ecos profundos no Novo Testamento. O cálice da salvação remete ao cálice que Jesus tomou na ceia (Mt 26:27). É possível que este salmo tenha sido um dos entoados por Ele antes de ir ao Getsêmani (Mc 14:26). O contraste entre o cálice da salvação e o cálice do sofrimento é evidente: o que nos é doce custou a Ele angústia e sangue.
Paulo cita o versículo 10 em 2 Coríntios 4:13 para falar da fé que resiste à aflição. E a morte preciosa dos santos se cumpre no testemunho dos mártires e na promessa de vida eterna em Apocalipse 21, onde Deus enxugará dos olhos toda lágrima.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 116
- Cálice da salvação – Imagem de gratidão e redenção, ligada à libação no Templo.
- Cordas da morte – Representação da ameaça iminente, como uma armadilha.
- Simples – Aqueles de fé infantil, sinceros, que dependem de Deus.
- Servos e filhos da serva – Identidade de aliança e pertença ao povo de Deus.
- Correntes – Símbolo da escravidão emocional e espiritual, quebradas por Deus.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 116
- A fé verdadeira persiste mesmo na aflição – A dor não anula a fé, mas revela sua profundidade.
- Orar é clamar mesmo quando não vemos saída – A súplica sincera é a linguagem do desespero que confia.
- Gratidão deve ser pública e prática – Não basta sentir, é preciso expressar em palavras e ações.
- Deus valoriza nossa vida e nossa morte – Mesmo na morte, estamos sob seus olhos cuidadosos.
- Cumprir votos é sinal de maturidade espiritual – Deus se agrada de corações fiéis e comprometidos.
- Descanso da alma vem após a tempestade – Tomar posse da paz é um exercício espiritual contínuo.
Conclusão
O Salmo 116 é um hino pessoal de libertação e louvor. Ele nos conduz da aflição à gratidão, da angústia ao descanso, da morte à vida. Ao lê-lo, percebo que minha jornada de fé também passa por vales escuros, mas Deus me ouve, me salva e me convida a responder com louvor.
A adoração não é apenas música, é memória, gratidão e fidelidade. Como o salmista, posso dizer: “Erguerei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 95–101.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1241–1252.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 718.