O Salmo 36 é atribuído a Davi, o ungido rei de Israel, e provavelmente foi composto durante um momento de contraste agudo entre a maldade dos homens e a fidelidade de Deus. O título hebraico indica que se trata de um “salmo de Davi, servo do Senhor”, título raro e significativo. O termo “servo do Senhor” aparece apenas mais duas vezes nos títulos dos Salmos (18 e 89), e carrega o peso de uma aliança e de missão (ver 2 Samuel 7).
O conteúdo do salmo apresenta três movimentos claros: primeiro, uma descrição da corrupção humana (vv. 1–4); depois, uma exaltação da misericórdia e fidelidade divinas (vv. 5–9); e, por fim, uma oração pedindo proteção contra os perversos (vv. 10–12). O salmo contrasta o pecado do homem com a bondade de Deus e revela como o justo encontra refúgio sob a fidelidade do Senhor.
Do ponto de vista teológico, o Salmo 36 apresenta um retrato bíblico da depravação humana. Não se trata de um erro ocasional, mas de uma corrupção estrutural no coração do ímpio. Essa realidade serve de pano de fundo para destacar o amor imensurável de Deus, sua justiça firme e sua salvação abundante. Como observa Hernandes Dias Lopes, “os ímpios são contrastados com os justos” (LOPES, 2022, p. 407). Já Derek Kidner afirma que “este é um salmo de contrastes poderosos” (apud LOPES, 2022, p. 407), reforçando a tensão entre o mal humano e o bem divino.
A corrupção do ímpio (Salmo 36:1–4)
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Davi inicia o salmo com um oráculo, uma revelação íntima sobre a maldade do homem: “Há no meu íntimo um oráculo a respeito da maldade do ímpio: Aos seus olhos é inútil temer a Deus” (v. 1). O temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 1:7), e sua ausência revela cegueira espiritual. Quando não se teme a Deus, tudo o mais se deteriora.
No versículo 2, Davi revela a arrogância do ímpio: “Ele se acha tão importante, que não percebe nem rejeita o seu pecado”. Como cristão, eu percebo que a raiz do pecado não é apenas a desobediência, mas o orgulho. O ímpio se autoengana, não reconhece seus erros e não vê necessidade de arrependimento.
O versículo 3 descreve o fruto desse coração corrompido: “As palavras da sua boca são maldosas e traiçoeiras; abandonou o bom senso e não quer fazer o bem”. O mal interno se expressa em palavras e atitudes. Abandonar o bom senso e recusar o bem indica uma vontade deliberada de agir com injustiça.
Finalmente, no versículo 4, Davi mostra que essa maldade é planejada: “Até na sua cama planeja maldade; nada há de bom no caminho a que se entregou, e ele nunca rejeita o mal”. O mal não é acidental; é cultivado. Ele medita sobre a iniquidade, deita com ela, acorda com ela. Como bem observou Wiersbe: “O coração corrupto gerou uma consciência corrupta, uma mente confusa e uma vontade pervertida” (WIERSBE, 2006, p. 221).
A bondade incomparável de Deus (Salmo 36:5–9)
A partir do verso 5, o salmo muda de tom: “O teu amor, Senhor, chega até os céus; a tua fidelidade até as nuvens”. Davi contrasta a limitação do mal humano com a infinitude do bem divino. O termo hebraico chesed (amor leal) aparece aqui para expressar o compromisso duradouro de Deus com seu povo.
O versículo 6 amplia esse contraste: “A tua justiça é firme como as altas montanhas; as tuas decisões insondáveis como o grande mar. Tu, Senhor, preservas tanto os homens quanto os animais”. A justiça de Deus é sólida e imutável. Seus juízos são profundos, e sua providência se estende até à criação animal. Como cristão, eu aprendo que posso confiar em um Deus que sustenta toda a vida, do homem ao mais pequeno dos animais.
No verso 7, Davi exclama: “Como é precioso o teu amor, ó Deus! Os homens encontram refúgio à sombra das tuas asas”. A imagem das asas remete ao cuidado protetor de Deus, como em Salmos 91:4. No antigo Oriente Próximo, essa metáfora era usada em contextos religiosos e reais, como observado por Walton, Matthews e Chavalas (2018, p. 684).
O versículo 8 aprofunda esse pensamento: “Eles se banqueteiam na fartura da tua casa; tu lhes dás de beber do teu rio de delícias”. A expressão “rio de delícias” ecoa o Éden. A palavra hebraica usada aqui está relacionada ao termo “Éden”, indicando que o relacionamento com Deus restaura aquilo que foi perdido no paraíso (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018, p. 684).
Finalmente, o versículo 9 apresenta uma das declarações mais profundas do salmo: “Pois em ti está a fonte da vida; graças à tua luz, vemos a luz”. Deus é a origem da vida e da luz. Ele não apenas dá vida; Ele é a vida (Jo 1:4). Como cristão, eu entendo que tudo o que preciso está em Deus. A verdadeira clareza sobre a vida só vem da luz que Ele projeta.
Oração e confiança (Salmo 36:10–12)
Davi conclui com uma oração: “Estende o teu amor aos que te conhecem, a tua justiça aos que são retos de coração” (v. 10). Ele pede pela continuidade do cuidado divino. Como afirma Spurgeon: “Pedimos nada mais que a continuação da misericórdia passada” (apud LOPES, 2022, p. 414).
No versículo 11, Davi pede proteção: “Não permitas que o arrogante me pisoteie, nem que a mão do ímpio me faça recuar”. Ele reconhece que seus inimigos são ativos e perigosos. Mas seu pedido mostra confiança de que o Senhor é seu escudo.
O salmo termina com uma visão profética da derrota dos ímpios: “Lá estão os malfeitores caídos, lançados ao chão, incapazes de levantar-se!” (v. 12). Essa é uma constatação histórica e espiritual. O caminho do ímpio leva à destruição. Como disse Allan Harman, “a pessoa que não vive no temor do Senhor finalmente perecerá” (apud LOPES, 2022, p. 415).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 36 não traga uma citação messiânica direta, ele prepara o terreno para as verdades reveladas em Jesus Cristo. O versículo 9, que diz “em ti está a fonte da vida”, encontra eco em João 4:14 e João 7:38, onde Jesus se apresenta como a fonte de água viva. A metáfora da luz também reaparece fortemente em João 1:4–9, onde Jesus é descrito como a “luz verdadeira”.
Além disso, a imagem do refúgio sob as asas de Deus é assumida por Jesus em Mateus 23:37, quando Ele lamenta Jerusalém: “Quantas vezes quis reunir os seus filhos, como a galinha junta os seus pintinhos debaixo das asas, mas vocês não quiseram!”.
Significado dos nomes e simbolismos
- Oráculo da transgressão (v.1) – A palavra hebraica indica uma declaração solene ou profética. Aqui, ironicamente, a transgressão fala como um falso profeta dentro do coração do ímpio.
- A sombra das asas (v.7) – Representa proteção e intimidade. Era a imagem usada para a cobertura do propiciatório no Santo dos Santos.
- Rio de delícias (v.8) – Remete ao Éden e simboliza prazer espiritual. É uma imagem rica da presença divina como fonte de satisfação.
- Fonte da vida (v.9) – Deus é a origem da vida física e espiritual. Ele não apenas concede vida, mas é o manancial eterno.
- A luz (v.9) – Simboliza revelação, pureza, alegria e direção. Em Deus vemos a realidade como ela é, pois Ele ilumina o entendimento.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 36
- A maldade começa no coração – O ímpio não é apenas alguém que comete erros, mas alguém que rejeita deliberadamente o temor de Deus.
- A verdadeira segurança está no caráter de Deus – Sua fidelidade, justiça e amor são fundamentos firmes. Como cristão, eu aprendo que devo correr para Ele e não confiar em minha própria força.
- Deus é o manancial da vida e da luz – Nada neste mundo pode substituir a fonte de vida que é o próprio Deus. Buscar prazer fora dEle é beber de cisternas rachadas (Jr 2:13).
- A intimidade com Deus traz fartura espiritual – Os que se abrigam em sua presença experimentam delícias eternas (Sl 16:11).
- O justo deve orar por proteção e perseverança – A vida cristã é marcada por oposição. Precisamos constantemente clamar para que o ímpio não nos pisoteie.
- O fim dos perversos é inevitável – Eles podem parecer triunfantes por um tempo, mas já estão caídos aos olhos de Deus. A justiça prevalecerá.
Conclusão
O Salmo 36 nos conduz da escuridão da maldade humana à luz da presença de Deus. Ele revela que o pecado é profundo, ativo e destrutivo. No entanto, mostra que a graça de Deus é mais alta que os céus, mais firme que as montanhas e mais profunda que o oceano. Como cristão, eu encontro aqui conforto e direção. Deus é meu abrigo, minha fonte, minha luz. Ao meditar neste salmo, sou lembrado de que confiar no caráter de Deus é a maior segurança que posso ter.
Referências
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.
- WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo: Antigo Testamento. 1. ed. São Paulo: Geográfica, 2006.