O Salmo 80 é um lamento coletivo atribuído a Asafe, ou possivelmente a um de seus descendentes. O pano de fundo é um momento crítico da história de Israel, provavelmente durante os últimos dias do Reino do Norte, antes da queda de Samaria em 722 a.C. A presença de tribos como Efraim, Manassés e Benjamim no texto (v. 2) indica que o salmista intercede por todo o povo, não apenas por Judá.
Allan Harman sugere que o salmo foi escrito durante os ataques da Assíria, o que reforça o ambiente de aflição. Hernandes Dias Lopes observa que o autor vive em um tempo de “hecatombes”, onde o brilho das promessas antigas parece ofuscado pelas trevas da realidade presente (LOPES, 2022, p. 871). O pedido repetido por restauração mostra um povo que reconhece seu afastamento de Deus e implora pela renovação da aliança.
A teologia do salmo gira em torno da presença divina representada pelo “rosto de Deus” (Nm 6.25) e da metáfora pastoral. O Deus exaltado sobre os querubins (v. 1) também é o pastor que conduz seu povo como rebanho. Ele é Senhor dos Exércitos, mas também o vinhateiro que plantou e cuidou de Israel. Essa fusão de majestade e proximidade revela um Deus santo, justo e misericordioso.
1. O clamor ao Pastor de Israel (Sl 80:1–3)
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“Escuta-nos, Pastor de Israel, tu, que conduzes a José como a um rebanho; tu, que tens o teu trono sobre os querubins, manifesta o teu esplendor” (v. 1)
O salmo se inicia com um apelo direto a Deus como Pastor, imagem rica que também aparece no conhecido Salmo 23. O Senhor é invocado como aquele que conduz José – referência coletiva ao Reino do Norte, incluindo Efraim e Manassés. Ele é exaltado como Rei entronizado entre os querubins, como descrito nas instruções sobre a Arca da Aliança.
No verso 2, Efraim, Benjamim e Manassés – tribos ligadas à linhagem de José e Raquel – são mencionadas como representantes da liderança da nação. No tempo do Êxodo, essas tribos marchavam juntas, próximas à Arca (Nm 2.18–24). O clamor é para que Deus desperte seu poder e salve seu povo da destruição iminente.
O verso 3 introduz um refrão litúrgico que se repete três vezes no salmo (vv. 3, 7 e 19): “Restaura-nos, ó Deus! Faze resplandecer sobre nós o teu rosto, para que sejamos salvos”. A linguagem evoca a bênção sacerdotal de Números 6:25, e sugere que a salvação depende da presença favorável de Deus, não de estratégias humanas.
2. A dor do castigo divino (Sl 80:4–7)
“Ó Senhor, Deus dos Exércitos, até quando arderá a tua ira contra as orações do teu povo?” (v. 4)
O salmista reconhece que a calamidade é resultado da ira de Deus. A oração parece não ser apenas ignorada, mas rejeitada. Como diz Calvino, “os céus estavam tão obscurecidos por uma fumaça diferente, que seus gemidos não chegavam a Deus” (CALVINO, 2009, p. 281). Esse tipo de silêncio divino também é percebido no lamento do Salmo 13, onde Davi pergunta: “Até quando te esquecerás de mim?”
O verso 5 traz imagens vívidas de sofrimento: pão de lágrimas, copos de pranto. Walton explica que essas expressões eram comuns em textos mesopotâmicos e acadianos para retratar profunda tristeza (WALTON et al., 2018, p. 704). Já no verso 6, Israel, que deveria ser bênção entre as nações (Gn 12.2), se torna alvo de zombaria e contenda.
O refrão retorna no verso 7, agora com mais intensidade: “ó Deus dos Exércitos”. A mudança no título divino representa uma escalada no apelo. O povo reconhece que só o Senhor dos Exércitos pode restaurar o que foi devastado.
3. A videira devastada (Sl 80:8–13)
“Do Egito trouxeste uma videira; expulsaste as nações e a plantaste” (v. 8)
A metáfora muda: de rebanho, o povo agora é uma videira. Essa imagem já havia sido usada em textos como Isaías 5, onde Israel é descrito como vinha infrutífera. Aqui, a videira foi transplantada do Egito e plantada por Deus na Terra Prometida. Ele mesmo limpou o solo, expulsou os inimigos e a fez crescer.
No verso 10, sua sombra cobre os montes e seus ramos alcançam os “cedros de Deus” – expressão que denota força e grandeza. Essa expansão geográfica remete ao cumprimento das promessas feitas a Abraão em Gênesis 15:18, que falava de uma terra desde o Eufrates até o Mediterrâneo (v. 11).
Mas no verso 12, tudo muda. As cercas da videira foram derrubadas. Os inimigos colhem seus frutos. O javali da floresta e os animais do campo – símbolos de potências estrangeiras – a devoram. Calvino observa que “era uma calamidade ainda maior ser ela consumida pelo fogo, erradicada e totalmente destruída” (CALVINO, 2009, p. 285). O cenário é de ruína total, causada pelo afastamento de Deus
4. O apelo final por restauração (Sl 80:14–19)
“Volta-te para nós, ó Deus dos Exércitos! Dos altos céus olha e vê! Toma conta desta videira” (v. 14)
Aqui o tom é mais intenso. O salmista clama para que Deus, de sua habitação celestial, volte o olhar para sua vinha. A oração é por visitação, proteção e renovo. Como no Salmo 126, o povo pede para que Deus restaure o que antes havia feito florescer.
No verso 15, a referência ao “filho que para ti fizeste crescer” pode ser lida em dois sentidos: Israel como nação escolhida ou uma alusão profética ao Messias. A tradição cristã, especialmente ao ler João 15, identifica essa videira verdadeira com Jesus.
O verso 16 mostra o estado de devastação: “foi consumida pelo fogo”. No verso 17, aparece o clamor por um representante: “Repouse a tua mão sobre aquele que puseste à tua mão direita, o filho do homem que para ti fizeste crescer”. Embora se refira inicialmente a Israel, esse versículo ecoa fortemente em textos messiânicos como Salmo 110, onde o Messias é descrito como exaltado à destra de Deus.
No verso 18, a oração ganha um tom de compromisso: “não nos desviaremos de ti”. O povo promete fidelidade e clama por reavivamento. A súplica final (v. 19) repete o refrão com seu clímax: “Senhor, Deus dos Exércitos”. A esperança está no brilho do rosto de Deus, não no braço do homem.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 80 não seja citado diretamente no Novo Testamento, ele contém elementos fortemente messiânicos. A referência ao “filho do homem” exaltado à destra de Deus (v. 17) aponta profeticamente para Jesus, como afirmado em Hebreus 1:3 e Hebreus 10:12.
Jesus se apresenta como a videira verdadeira em João 15, corrigindo a infidelidade de Israel. Ele é o novo Israel, o Filho da destra, aquele por meio de quem a restauração plena se realiza.
O clamor por um rosto que resplandece (vv. 3, 7, 19) encontra resposta em Cristo, a imagem visível do Deus invisível (Cl 1.15), por meio de quem vemos a glória do Pai (Jo 1.14).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 80
- Pastor de Israel – Imagem de cuidado e liderança divina. Remete ao Êxodo e à condução pelo deserto.
- Querubins – Criaturas celestiais que guardavam o trono de Deus, simbolizando santidade e majestade (WALTON et al., 2018, p. 704).
- Videira – Símbolo de Israel como povo de Deus, cultivado com zelo, mas que se desviou. Em Cristo, a imagem é ressignificada (Jo 15.1).
- Rosto de Deus – Representa favor, aliança e presença. Quando Deus “faz resplandecer o rosto”, ele concede vida e bênção.
- Senhor dos Exércitos – Título que exalta o poder soberano de Deus, especialmente em tempos de guerra ou julgamento.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 80
- O afastamento de Deus traz ruína – Como cristão, aprendo que não existe segurança fora da presença de Deus.
- O verdadeiro arrependimento reconhece a culpa sem desculpas – Israel não culpou os inimigos, mas implorou pela volta do favor divino.
- A oração persistente é instrumento de restauração – O refrão repetido mostra que clamar com fé é essencial.
- A esperança está no rosto de Deus, não na força humana – O brilho do rosto do Senhor é suficiente para salvar.
- Jesus é a videira verdadeira que nunca será destruída – Em Cristo, encontramos a restauração perfeita.
- Mesmo em meio à ruína, Deus preserva um remanescente – Isso reforça a fidelidade divina e nos convida a confiar em sua graça.
Conclusão
O Salmo 80 é um grito coletivo que sobe do meio dos escombros da história. O povo reconhece seu pecado, entende a justiça do juízo divino, mas clama por restauração. Ele nos ensina que a salvação não está em alianças políticas, força militar ou estratégias humanas. Está no rosto do Senhor.
Ao meditar neste salmo, eu aprendo que, mesmo quando Deus parece distante, é possível clamar por sua visitação. E quando o rosto de Deus resplandece sobre nós, toda a nossa história pode ser restaurada.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 704.