O Salmo 85 é atribuído aos filhos de Corá, uma linhagem levítica responsável pelo louvor no templo (cf. 1 Crônicas 6:31-38). Embora o salmo não indique uma data precisa, há fortes indícios de que tenha sido composto após o retorno do exílio babilônico.
A ausência de menção ao rei ou ao templo, assim como o tom de restauração e súplica por renovação espiritual, apontam para o período pós-exílico, como também acontece no Salmo 126.
Hernandes Dias Lopes observa que o salmista “olha para o passado e recorda as misericórdias de Deus, olha para o presente e clama por avivamento, e olha para o futuro para se apropriar das promessas divinas” (LOPES, 2022, p. 926). Essa estrutura tripla — memória, clamor e esperança — é central para a espiritualidade do salmo.
João Calvino também reconhece esse movimento de recordação e súplica. Ele afirma que o salmista encoraja o povo a confiar em Deus com base nos livramentos passados, como evidência da fidelidade contínua de Deus à sua aliança (CALVINO, 2009, p. 342). Assim, o Salmo 85 é uma oração coletiva que mistura gratidão, arrependimento e esperança.
1. Olhando para o passado: as misericórdias de Deus (Sl 85:1–3)
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“Foste favorável à tua terra, ó Senhor; trouxeste restauração a Jacó.” (v. 1)
Os três primeiros versículos estão no passado. Eles celebram aquilo que Deus já fez: favor à terra, restauração do povo, perdão da culpa e cessação da ira. Ao ler esse trecho, eu percebo que a memória da graça é um antídoto contra o desespero.
A restauração mencionada aqui pode se referir ao retorno do exílio babilônico (cf. Esdras 1). Deus demonstrou misericórdia ao trazer de volta os exilados. Calvino destaca que “a lembrança dos benefícios anteriores de Deus é o que mais eficazmente nos anima a chegar ao trono da graça” (CALVINO, 2009, p. 342).
O perdão descrito no versículo 2 é total: “Perdoaste a culpa do teu povo e cobriste todos os seus pecados.” O verbo “cobrir” ecoa a linguagem da expiação. Como cristão, isso me lembra da obra de Cristo, que não apenas cobre, mas remove o pecado (cf. Hebreus 9:26).
No versículo 3, o salmista celebra a retirada da ira divina. Spurgeon comenta que “cobrir o sol seria fácil comparado a cobrir o pecado, contudo, o pecado foi removido eficientemente em um ato único e eterno” (apud LOPES, 2022, p. 926). Essa é a base para clamar por nova restauração.
2. Olhando para o presente: súplica por restauração e avivamento (Sl 85:4–7)
“Restaura-nos mais uma vez, ó Deus, nosso Salvador, e desfaze o teu furor para conosco.” (v. 4)
A partir do versículo 4, o salmo assume um tom de súplica. O salmista reconhece que, apesar das bênçãos passadas, a situação presente ainda exige intervenção divina. A pergunta do versículo 5 expressa o temor de que a ira de Deus seja permanente: “Ficarás indignado conosco para sempre?”
Calvino explica que essa indagação nasce da dor prolongada do sofrimento. Ele diz que “Deus propositadamente continua seu corretivo por um período mais longo para estimular ao arrependimento” (CALVINO, 2009, p. 347). Deus disciplina por amor, e não por desprezo.
No versículo 6, encontramos um dos clamores mais fortes do salmo: “Acaso não nos renovarás a vida, a fim de que o teu povo se alegre em ti?” Aqui está o coração do avivamento: Deus vivificando seu povo para que a alegria em Deus seja restaurada. Avivamento não é agitação emocional, mas retorno ao primeiro amor.
Hernandes Dias Lopes ensina que “avivamento não é um evento produzido pelo homem, mas uma mudança de Deus operada no homem” (LOPES, 2022, p. 926). Ele é obra exclusiva, extraordinária, repetida e restauradora da alegria em Deus.
O versículo 7 encerra essa seção com um pedido por amor e salvação. O salmista deseja não apenas alívio, mas a manifestação visível da misericórdia de Deus: “Mostra-nos o teu amor, ó Senhor, e concede-nos a tua salvação!”
3. Olhando para o futuro: esperança nas promessas (Sl 85:8–13)
“Eu ouvirei o que Deus, o Senhor, disse: Ele promete paz ao seu povo, aos seus fiéis! Não voltem eles à insensatez!” (v. 8)
O salmista assume a postura de quem ouve. Ele confia que Deus falará de paz. Calvino observa que “o salmista, usando seu próprio exemplo, exorta a todo o corpo da Igreja a aquietar-se e manter a calma” (CALVINO, 2009, p. 347). O silêncio espiritual é um passo importante para discernir a voz de Deus.
O versículo 9 aponta para uma salvação próxima e para a glória de Deus habitando entre o povo. Hernandes Dias Lopes destaca que “o termo ‘assistir’ no hebraico remete à Shekinah, a glória de Deus habitando entre o povo” (LOPES, 2022, p. 926). A presença de Deus é a maior esperança do salmista.
Os versículos 10 e 11 apresentam uma das imagens mais belas das Escrituras: “O amor e a fidelidade se encontrarão; a justiça e a paz se beijarão.” Calvino entende que “essas quatro virtudes florescendo e supremamente governando são a distinção do reino de Cristo” (CALVINO, 2009, p. 351).
Essa linguagem aponta para reconciliação total. É no Messias que essas virtudes se unem. A verdade brota da terra, a justiça desce do céu. Isso aponta para a cruz, onde graça e verdade se encontram em plenitude (cf. João 1:14).
Os dois últimos versículos mostram a resposta à oração. “O Senhor nos trará bênçãos, e a nossa terra dará a sua colheita. A justiça irá adiante dele e preparará o caminho para os seus passos.” Calvino conclui que “a justiça andará adiante de Deus e ocupará cada vereda” (CALVINO, 2009, p. 355). É a visão de um futuro glorioso para o povo restaurado.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 85 não apresente uma profecia direta, ele aponta fortemente para a obra redentora de Cristo. A reconciliação entre justiça e paz se realiza na cruz. Spurgeon afirma que “o sentido interno deste texto é Cristo Jesus, a Palavra reconciliadora” (apud LOPES, 2022, p. 926).
A expectativa da glória habitando na terra encontra eco em João 1:14: “Vimos a sua glória, glória como do unigênito vindo do Pai.” A vinda de Cristo trouxe a paz prometida e inaugurou o tempo da restauração final.
Além disso, a expressão “a justiça irá adiante dele” encontra paralelo em Isaías 40:3, texto aplicado a João Batista em Mateus 3:3, anunciando o caminho do Senhor.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 85
- Jacó – Representa todo o povo de Deus. O nome evoca a aliança com os patriarcas.
- Paz – No contexto bíblico, paz (shalom) inclui prosperidade, bem-estar e comunhão com Deus.
- Restaurar – No hebraico, shuv, carrega a ideia de retornar ao estado anterior, tanto físico quanto espiritual.
- Beijo entre justiça e paz – Simboliza reconciliação. Em Cristo, a justiça divina e o amor se encontram perfeitamente.
- Shekinah – A glória de Deus habitando entre o povo, evocando a presença divina no tabernáculo.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 85
- Deus já nos mostrou sua fidelidade – Ao lembrar do que Ele fez, ganhamos força para orar por restauração.
- O verdadeiro avivamento vem de Deus – Não é manipulado por técnicas humanas, mas nasce da soberania divina.
- A alegria do povo de Deus está ligada à sua presença – Não há regozijo genuíno fora de comunhão com Ele.
- A justiça e a paz se unem em Cristo – Ele é o cumprimento da esperança de reconciliação.
- A obediência abre caminho para a colheita espiritual – Quando o povo ouve e segue o Senhor, a terra responde.
- O silêncio diante de Deus é essencial – Parar para ouvir é uma forma de fé e reverência.
- A ira de Deus não é eterna para os seus – O castigo tem fim; a misericórdia é eterna.
Conclusão
O Salmo 85 é uma oração por restauração que nasce da lembrança da fidelidade divina. Ele nos ensina a olhar para o passado com gratidão, para o presente com fé e para o futuro com esperança. Como cristão, eu aprendo que a história da redenção é também a minha história. Cristo é o cumprimento da justiça que se beijou com a paz, e sua cruz é a resposta final ao clamor por salvação. Que este salmo nos leve a clamar por um avivamento verdadeiro — aquele que começa no coração, se manifesta na comunhão e transforma a terra com frutos de justiça.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 342–355.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 926.