O Salmo 97 integra uma coleção conhecida como “Salmos da Realeza do Senhor” (Sl 93–100), cujo tema central é o governo soberano de Deus sobre toda a criação. Não há autoria explícita no título, mas é possível que tenha sido composto durante ou após o exílio babilônico, período em que a reafirmação da soberania divina era necessária para consolar e fortalecer o povo de Deus.
Nesse contexto, o salmo apresenta Yahweh como Rei universal, exaltado acima de todas as nações e de todos os deuses pagãos. A linguagem utilizada está carregada de imagens teofânicas — relâmpagos, fogo, nuvens — símbolos comuns nas narrativas de manifestação divina no Antigo Oriente Próximo. Segundo Walton, “as características de Yahweh como o Criador, doador da fertilidade e Guerreiro Divino têm muito em comum com essas epopeias antigas” (WALTON et al., 2018, p. 710).
O texto também se opõe diretamente ao culto idólatra, reforçando a superioridade de Yahweh sobre os ídolos e os falsos deuses, algo que ecoa os desafios enfrentados por Israel ao longo de sua história, como nos tempos de Elias e nos dias do exílio. João Calvino destaca que o salmo visa “imprimir nos corações humanos o temor de Deus” (CALVINO, 2009, p. 548), retratando sua majestade como irresistível, gloriosa e justa.
Portanto, o Salmo 97 oferece uma resposta à idolatria e à desesperança: Deus reina, sua justiça é visível e sua salvação se estende a todos os povos.
1. O Senhor reina com justiça e majestade (Sl 97:1–2)
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“O Senhor reina! Exulte a terra e alegrem-se as regiões costeiras distantes.” (v. 1)
O salmo começa com uma declaração poderosa: “O Senhor reina!”. Essa frase é mais que um anúncio; é um fundamento de fé. Ao afirmar que Deus reina, o salmista convida toda a terra a exultar, inclusive as ilhas mais distantes, indicando que seu domínio é universal.
Ao ler isso, eu sou lembrado de que a realeza de Deus não depende das circunstâncias humanas. Mesmo em meio à injustiça ou à idolatria, Ele reina.
“Nuvens escuras e espessas o cercam; retidão e justiça são a base do seu trono.” (v. 2)
A imagem das nuvens densas lembra a manifestação de Deus no Sinai (Êx 19:16). Walton comenta que “tais descrições de teofania podem ser encontradas nos textos que falam do deus ugarítico Baal, mas são aplicadas aqui ao verdadeiro Deus” (WALTON et al., 2018, p. 710). Yahweh adota símbolos conhecidos das culturas vizinhas para mostrar que Ele é o único e verdadeiro Rei.
Calvino interpreta essas trevas como um lembrete da majestade divina que impõe temor: “um céu carregado de nuvens nos intimida mais do que um céu límpido” (CALVINO, 2009, p. 548). A justiça e a retidão, base do trono de Deus, mostram que seu governo é confiável.
2. A manifestação do Rei é irresistível (Sl 97:3–6)
“Fogo vai adiante dele e devora os adversários ao redor.” (v. 3)
O fogo simboliza julgamento. É uma referência direta às manifestações de Deus no Êxodo e no Sinai, e também ao juízo escatológico (cf. Joel 2:2). Hernandes Dias Lopes afirma que “a onipotência de Deus é uma chama devoradora, que nenhum inimigo pode resistir” (LOPES, 2022, p. 1045).
Como cristão, eu aprendo aqui que a santidade de Deus não é passiva. Ela se move, consome, transforma. Onde Ele chega, nada permanece o mesmo.
“Seus relâmpagos iluminam o mundo; a terra os vê e estremece.” (v. 4)
A luz que parte de Deus revela e confronta. Spurgeon via nesse relâmpago o Evangelho iluminando as trevas. A terra estremece porque está diante da glória do Altíssimo.
“Os montes se derretem como cera diante do Senhor, diante do Soberano de toda a terra.” (v. 5)
Montanhas, que são símbolos de estabilidade e força, se derretem na presença de Deus. Isso nos lembra que nenhum poder humano ou natural pode resistir à manifestação divina. Calvino afirma que “falar em montanhas que se derretem é ver desaparecer os monumentos mais imemoriais” (CALVINO, 2009, p. 549).
“Os céus proclamam a sua justiça, e todos os povos contemplam a sua glória.” (v. 6)
Aqui temos uma expansão cósmica da revelação. Os céus, como testemunhas, anunciam a justiça de Deus. E todos os povos veem sua glória, uma antecipação do que se cumprirá em Cristo (cf. Apocalipse 1:7).
3. O Senhor triunfa sobre os falsos deuses (Sl 97:7–9)
“Ficam decepcionados todos os que adoram imagens e se vangloriam de ídolos. Prostram-se diante dele todos os deuses!” (v. 7)
O salmo se volta contra a idolatria. Os adoradores de imagens são envergonhados. Calvino diz que “a religião se torna o princípio de todas as superstições… a percepção que nutrimos de Deus é imediatamente depravada” (CALVINO, 2009, p. 550). A verdadeira adoração só é possível quando conhecemos o Deus verdadeiro.
Ao ler isso, eu sou confrontado com meus próprios ídolos — tudo aquilo que ocupa o lugar de Deus no coração.
“Sião ouve e se alegra, e as cidades de Judá exultam, por causa das tuas sentenças, Senhor.” (v. 8)
O povo de Deus se alegra ao ver sua justiça manifesta. Lopes comenta: “os idólatras são confundidos, os falsos deuses se dobram, e o povo de Deus celebra” (LOPES, 2022, p. 1048). Quando Deus é exaltado, a verdadeira alegria floresce.
“Pois tu, Senhor, és o Altíssimo sobre toda a terra! És exaltado muito acima de todos os deuses!” (v. 9)
O versículo afirma a supremacia de Yahweh. Não há comparação possível. Calvino resume: “nenhuma criatura deve ser exaltada por nós além da medida própria” (CALVINO, 2009, p. 551).
4. O povo de Deus reflete o caráter do Rei (Sl 97:10–12)
“Odeiem o mal, vocês que amam o Senhor, pois ele protege a vida dos seus fiéis e os livra das mãos dos ímpios.” (v. 10)
O amor a Deus exige uma postura moral clara. Quem ama o Senhor deve odiar o mal. Spurgeon enfatiza que “devemos odiar o mal, não agir mal, não falar mal, não pensar mal” (LOPES, 2022, p. 1049). Deus guarda os que o amam, mesmo quando enfrentam a maldade.
“A luz nasce sobre o justo e a alegria sobre os retos de coração.” (v. 11)
Mesmo que o justo passe por trevas, a luz está a caminho. Calvino observa que “a alegria que estivera oculta será difundida como semente lançada à terra” (CALVINO, 2009, p. 552). Deus não apenas protege, mas recompensa com luz e alegria.
“Alegrem-se no Senhor, justos, louvem o seu santo nome.” (v. 12)
O salmo termina com louvor. A alegria verdadeira nasce no relacionamento com o Senhor. Como cristão, eu aprendo que minha maior segurança e alegria não estão nas bênçãos, mas no próprio Deus.
Cumprimento das profecias
O Salmo 97 aponta para o reinado messiânico de Cristo. A expressão “O Senhor reina” se cumpre plenamente na ascensão de Jesus, exaltado à direita de Deus (cf. Filipenses 2:9–11). Os relâmpagos e o fogo têm paralelos nas visões do Apocalipse, como em Apocalipse 4:5.
A proclamação da justiça a todos os povos encontra seu cumprimento na pregação do evangelho. Como diz Calvino, “a justiça espiritual de Deus se manifestaria tão magistralmente sob o reinado de Cristo, ao ponto de encher céu e terra” (CALVINO, 2009, p. 549).
A humilhação dos ídolos e a exaltação do verdadeiro Deus também se cumprem em Cristo. Ele é aquele diante de quem todo joelho se dobrará (Fp 2:10).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 97
- Nuvens e escuridão – Representam a majestade inacessível de Deus e seu caráter justo e misterioso (Êx 19:16).
- Fogo – Símbolo do julgamento divino e da santidade que consome (Dt 4:24).
- Relâmpagos – Expressam o poder revelador e aterrador da presença de Deus.
- Montes derretendo – Indicam que nada pode resistir ao poder do Senhor, nem os mais estáveis elementos da criação.
- Ídolos – Representações humanas que substituem o Deus verdadeiro. Símbolo da cegueira espiritual (Is 44:9-20).
- Luz e alegria – Bençãos reservadas aos justos; promessa de renovação e paz.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 97
- Deus reina mesmo quando tudo parece fora de controle – A soberania de Deus não depende das circunstâncias visíveis.
- A presença de Deus transforma tudo – Onde Ele está, há temor, mas também luz e alegria.
- A idolatria sempre leva à decepção – Só o Senhor é digno de confiança.
- A justiça de Deus é motivo de alegria, não de medo – Para os justos, os juízos de Deus são fonte de esperança.
- O amor a Deus exige aversão ao mal – Não é possível amar a Deus e tolerar o pecado.
- O futuro do justo é luminoso – Mesmo que a noite seja longa, a luz virá.
- A verdadeira alegria nasce em Deus, não nas circunstâncias – Ele é a fonte inesgotável de contentamento.
Conclusão
O Salmo 97 nos leva da declaração majestosa do reinado de Deus até a alegria dos justos. Ele mostra um Deus que reina com justiça, que revela sua glória com poder, que humilha os ídolos e protege seu povo. Como cristão, eu sou lembrado de que viver de forma justa é uma resposta natural ao reinado do Senhor.
O trono de Deus permanece firme. Sua justiça será proclamada, sua glória será vista, e os justos, por fim, se alegrarão nEle. Diante disso, a única resposta coerente é viver em reverência, fugir do mal e esperar com confiança a luz que há de nascer.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 548–552.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1043–1050.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 710.