O Salmo 72 surge num contexto de transição monárquica. Segundo o título hebraico, ele é “de Salomão”, mas a tradição e a análise literária indicam que se trata de uma oração de Davi por seu filho e sucessor. O verso final – “Encerram-se aqui as orações de Davi, filho de Jessé” (v. 20) – reforça essa interpretação.
Muitos estudiosos compreendem que o salmo foi escrito por Davi, mas estruturado poeticamente por Salomão, talvez como forma de honrar e perpetuar a oração do pai em favor do reino (CALVINO, 2009, p. 64).
Historicamente, estamos diante da transição do reinado de Davi para Salomão. Davi, já idoso, prepara-se para entregar o trono, mas antes disso apresenta um salmo que é ao mesmo tempo oração, bênção e profecia. Ele intercede para que seu filho reine com justiça, socorra os pobres e estabeleça paz duradoura. Contudo, à medida que o texto avança, a linguagem se eleva para além de um reinado terreno. A justiça absoluta, a duração eterna do trono e o domínio universal apontam para um Rei maior: o Messias prometido.
Teologicamente, o salmo está ancorado na aliança davídica registrada em 2 Samuel 7. Ali, Deus prometeu a Davi que um descendente seu reinaria para sempre. O Salmo 72 é a expressão dessa esperança messiânica. O rei ideal que julga com justiça, cuida dos pobres e é adorado por todas as nações, não é apenas Salomão, mas o Filho de Davi que haveria de vir: Jesus Cristo.
No mundo antigo, especialmente na Mesopotâmia, hinos de coroação exaltavam o rei como defensor dos fracos e portador da justiça divina. Walton e seus colegas mostram que o rei era visto como instrumento dos deuses para manter a ordem e a fertilidade (WALTON et al., 2018, p. 700). Davi se apropria dessa linguagem para descrever o Rei dos reis, que julga com retidão e faz prosperar os justos.
Justiça e compaixão no governo (Sl 72:1–4)
Davi ora: “Reveste da tua justiça o rei, ó Deus, e o filho do rei, da tua retidão” (v. 1). A função do rei era exercer a justiça em nome de Deus. Quando o governante se afastava da retidão divina, a sociedade inteira sofria. Ao pedir justiça, Davi reconhece que o poder precisa ser regulado pela vontade de Deus, não pela ambição humana (CALVINO, 2009, p. 65).
Nos versos seguintes, Davi detalha como esse governo justo deve se manifestar: “Defenda ele os oprimidos entre o povo e liberte os filhos dos pobres” (v. 4). O rei messiânico é aquele que não despreza os fracos. Ao contrário, ele os protege e julga seus opressores.
Paz e prosperidade como frutos da justiça (Sl 72:5–7)
“Que ele perdure como o sol e como a lua, por todas as gerações” (v. 5). Essa linguagem cósmica comunica longevidade e estabilidade. O reinado do Messias não tem fim.
A comparação com a chuva (v. 6) reforça o papel restaurador do rei. Assim como a água traz vida à terra, a justiça traz vida ao povo. “Floresçam os justos nos dias do rei” (v. 7). A paz verdadeira brota quando reina a justiça.
O domínio universal do Messias (Sl 72:8–11)
Davi amplia o escopo: “Governe ele de mar a mar e desde o rio Eufrates até os confins da terra” (v. 8). Essas imagens, comuns em inscrições reais antigas, descrevem o domínio pleno do rei (WALTON et al., 2018, p. 701). Porém, essa linguagem nunca se cumpriu em Salomão, apontando para um cumprimento mais elevado em Cristo.
Os reis de Társis, Sabá e Sebá (v. 10) representam os povos mais distantes e exóticos. Davi anuncia que até os mais poderosos se curvarão ao Rei justo. O verso 11 resume: “Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações”.
A redenção dos pobres e o valor da vida (Sl 72:12–14)
A compaixão do rei se destaca novamente: “Pois ele liberta os pobres que pedem socorro, os oprimidos que não têm quem os ajude” (v. 12). Diferente dos reis que ignoram os pequenos, o Messias se importa com os marginalizados.
“Aos seus olhos a vida deles é preciosa” (v. 14). Esta é uma das frases mais tocantes do salmo. Como cristão, eu aprendo que o valor da vida humana não está na posição social, mas no olhar de Deus. Esse rei não explora o povo, mas dá a vida por ele.
A prosperidade do seu reino (Sl 72:15–17)
“Haja fartura de trigo por toda a terra, ondulando no alto dos montes” (v. 16). A bênção do rei se estende à criação. Há fartura, beleza e crescimento. As cidades florescem e o povo prospera.
“Permaneça para sempre o seu nome […] sejam abençoadas todas as nações por meio dele” (v. 17). Aqui, Davi retoma a promessa feita a Abraão em Gênesis 12:3. O Messias é o descendente de Abraão por meio de quem todas as nações são abençoadas.
A doxologia final (Sl 72:18–20)
O salmo termina com louvor: “Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, o único que realiza feitos maravilhosos” (v. 18). A glória pertence a Deus, não ao rei. A doxologia expressa que o verdadeiro protagonista da história é o Senhor.
O verso 20 encerra: “Encerram-se aqui as orações de Davi, filho de Jessé”. É uma nota editorial, marcando o fim da coleção davídica no Livro II dos Salmos (Sl 42–72).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 72 tenha uma aplicação inicial ao reinado de Salomão, seu cumprimento pleno está em Jesus Cristo. Como afirma Hernandes Dias Lopes: “o rei descrito nesse salmo não é Davi, mas o Messias, conhecido como o Filho de Davi” (LOPES, 2022, p. 772).
Mateus 12:42 registra as palavras de Jesus: “eis aqui quem é maior do que Salomão”. Paulo escreve que “nele serão benditas todas as nações”, ecoando Gênesis 12 e o Salmo 72 (Gálatas 3:8). Filipenses 2:10–11 mostra que “todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus é o Senhor” – uma clara alusão ao verso 11.
Apocalipse 21 descreve a nova Jerusalém, onde “os reis da terra levarão a ela a sua glória”, refletindo o cumprimento escatológico do domínio universal do Messias (Apocalipse 21:24).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 72
- Társis, Sabá e Sebá: Representam as extremidades conhecidas do mundo antigo. Simbolizam a abrangência universal do reino do Messias (WALTON et al., 2018, p. 701).
- Montes e colinas (v. 3): Figuras da autoridade e estabilidade do governo, mas também do alcance da justiça – mesmo nos lugares altos e distantes.
- Chuva e aguaceiros (v. 6): Simbolizam restauração, fertilidade e bênção. A presença do rei é como água para a terra seca.
- Lamber o pó (v. 9): Gesto de rendição e humildade, comum nas culturas do Oriente Próximo.
- Nome duradouro (v. 17): No hebraico, a ideia é de “ter descendência”, mas aqui aponta para o reinado eterno do Messias.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 72
- A verdadeira justiça vem de Deus – Davi sabia que seu filho não poderia reinar com equidade sem a ajuda divina. Como cristão, eu aprendo que toda liderança precisa da orientação de Deus.
- O governo justo protege os fracos – O Messias não se esquece dos pobres. Ele os ouve, acolhe e salva. Isso me desafia a olhar com compaixão para os que sofrem e me colocar à disposição para ajudar.
- A paz verdadeira é fruto da justiça – Sem justiça, não há paz duradoura. Quando Cristo reina, há ordem, segurança e prosperidade. Isso me convida a buscar primeiro o Reino de Deus e a sua justiça (Mateus 6:33).
- A glória do Messias abençoa o mundo todo – Seu nome é fonte de bênção. Em Jesus, todos os povos encontram esperança, redenção e propósito.
- O Messias valoriza cada vida – O verso 14 afirma que “aos seus olhos a vida deles é preciosa”. Isso me lembra que, diante de Deus, cada pessoa tem valor eterno. Ele não é indiferente ao sofrimento.
- O louvor é a resposta à salvação – O salmo termina com adoração. Quando reconheço o poder, a compaixão e a realeza de Cristo, só posso bendizer o seu nome e viver para a sua glória.
Conclusão
O Salmo 72 é, ao mesmo tempo, uma oração de Davi, uma profecia messiânica e uma declaração de fé no governo perfeito de Deus. Começa com um pedido por justiça e termina com uma visão universal do domínio de Cristo. Ao meditar neste salmo, eu sou lembrado de que nenhuma liderança humana é suficiente. Somente Jesus, o Rei justo e eterno, pode trazer redenção, paz e prosperidade verdadeira.
Diante de tantos reinos instáveis e governantes falhos, é reconfortante saber que o trono de Cristo é eterno, sua justiça é perfeita e sua compaixão não tem fim.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. Série Comentários Bíblicos. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 64–84.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 769–787.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 700–701.