O Salmo 90 ocupa uma posição singular no Saltério. Ele marca a abertura do Livro IV (Salmos 90–106) e é o único salmo explicitamente atribuído a Moisés. Por isso, é considerado o mais antigo dos salmos. A designação “homem de Deus” (v. 1) reforça a autoridade profética de Moisés, reconhecida ao longo de toda a história bíblica (Dt 33:1).
O pano de fundo desse salmo remonta à experiência de Moisés com o povo de Israel no deserto, provavelmente durante os quarenta anos de peregrinação após a incredulidade do povo na entrada de Canaã (Nm 14:26–35). Durante esse período, Moisés testemunhou a morte de toda uma geração — cerca de dois milhões de pessoas — por causa da rebeldia contra Deus. Ele lidava diariamente com a transitoriedade da vida e com o peso da ira divina.
Calvino observa que Moisés “deplora que até mesmo os filhos de Abraão experimentaram por algum tempo severidade tão intensa, que quase se viram consumidos por angústias” (CALVINO, 2009, p. 441). Já Hernandes Dias Lopes destaca que esse é “um dos salmos mais profundos, tanto nos sentimentos quanto na teologia” (LOPES, 2022, p. 967).
O Salmo 90 é uma oração que mistura lamento, confissão, teologia e súplica. Ele trata da eternidade de Deus e da fragilidade humana, apresentando um contraste intenso entre o Criador eterno e a criatura efêmera. A estrutura do salmo se divide entre afirmações sobre Deus, constatações sobre o homem e uma série de súplicas por misericórdia, alegria e propósito.
1. Deus, o eterno refúgio (Salmo 90:1–2)
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“Senhor, tu és o nosso refúgio, sempre, de geração em geração” (v. 1). A oração começa com uma declaração de confiança. Deus não é apenas um abrigo temporário, mas o lar permanente de seu povo. Ao ler esse versículo, eu me lembro que, por mais instável que seja o mundo, Deus permanece como nossa morada segura.
“Antes de nascerem os montes e de criares a terra e o mundo, de eternidade a eternidade tu és Deus” (v. 2). Moisés contrasta a eternidade de Deus com a criação temporária. Como Calvino diz, “essa estabilidade eterna e imutável de Deus não podia ser percebida antes da criação do mundo, mas pode ser deduzida a posteriori” (CALVINO, 2009, p. 444).
2. A brevidade da vida humana (Salmo 90:3–6)
“Fazes os homens voltarem ao pó” (v. 3). Moisés retoma a linguagem de Gênesis 3:19. O homem, formado do pó, volta ao pó. Essa é a realidade inescapável da morte.
“Mil anos para ti são como o dia de ontem que passou” (v. 4). A percepção divina do tempo difere da nossa. Como afirma Pedro, “para o Senhor, um dia é como mil anos” (2Pe 3:8). Essa declaração reforça a eternidade de Deus diante da efemeridade da humanidade.
“Tu arrastas os homens como uma correnteza” (v. 5). A vida humana é comparada a um sono, à relva que floresce pela manhã e murcha à tarde. A imagem transmite fragilidade e rapidez. Segundo Calvino, “a morte é com propriedade chamada de uma inundação invisível” (CALVINO, 2009, p. 447).
3. A ira de Deus contra o pecado (Salmo 90:7–11)
“Somos consumidos pela tua ira e aterrorizados pelo teu furor” (v. 7). A morte não é apenas consequência natural, mas também sinal do julgamento divino contra o pecado.
“Conheces as nossas iniquidades” (v. 8). Nada está oculto aos olhos de Deus. Até nossos pecados mais secretos são expostos. Essa percepção me confronta: não posso esconder nada dEle.
“Quem conhece o poder da tua ira?” (v. 11). Moisés reconhece que o temor do Senhor é proporcional à consciência de sua justiça. Como Calvino afirma, “somente os fiéis são sensíveis à ira de Deus” (CALVINO, 2009, p. 451).
4. O clamor por sabedoria e compaixão (Salmo 90:12–17)
“Ensina-nos a contar os nossos dias para que o nosso coração alcance sabedoria” (v. 12). Saber que a vida é breve nos leva à sabedoria. Calvino afirma que até o mais habilidoso em matemática “é incapaz de contar oitenta anos de sua própria vida” (CALVINO, 2009, p. 452). Esse versículo me lembra que devo viver com propósito e perspectiva eterna.
“Volta-te, Senhor! Até quando será assim?” (v. 13). Moisés clama por misericórdia. A pergunta “até quando?” é recorrente nos salmos e revela um coração aflito, mas esperançoso.
“Satisfaze-nos pela manhã com o teu amor leal” (v. 14). A verdadeira satisfação não vem de circunstâncias externas, mas do amor constante de Deus. Só Ele pode preencher o vazio que a brevidade da vida revela.
“Sejam manifestos os teus feitos aos teus servos, e aos filhos deles o teu esplendor!” (v. 16). O desejo é que a geração atual e as futuras vejam a glória de Deus.
“Consolida, para nós, a obra de nossas mãos” (v. 17). Moisés pede que o Senhor torne significativo o trabalho humano. Ele entende que, sem Deus, nossas obras são vãs.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 90 não contenha uma profecia messiânica explícita, ele lança bases que se cumprem em Jesus Cristo. O tema da morte como consequência do pecado é respondido pela morte substitutiva de Cristo, que venceu a morte e trouxe vida eterna.
Paulo afirma: “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus” (Rm 6:23). A morte, que domina o Salmo 90, é superada na cruz. A transitoriedade que o salmo lamenta é vencida pela promessa da ressurreição, como se lê em 1 Coríntios 15.
Além disso, a súplica por sabedoria encontra eco em Cristo, que se tornou “para nós sabedoria de Deus” (1Co 1:30). Ele é o cumprimento perfeito da oração de Moisés.
Significado dos nomes e simbolismos
- Senhor, nosso refúgio – Representa Deus como lugar seguro e permanente, contrastando com a instabilidade da vida humana.
- Homem ao pó – Alusão direta à criação e queda em Gênesis. Simboliza a fragilidade e mortalidade humanas.
- Mil anos como um dia – Destaca a transcendência de Deus em relação ao tempo humano.
- Relva da manhã – Imagem da beleza efêmera e da fragilidade da vida.
- Amor leal (ḥéṙed) – Termo hebraico que remete à aliança fiel de Deus, sua misericórdia contínua.
- Obra de nossas mãos – Simboliza as ações humanas que só ganham valor quando confirmadas por Deus.
Lições espirituais e aplicações práticas
- A eternidade de Deus é nosso abrigo seguro
O mundo muda, o tempo passa, mas Deus permanece. Ao meditar no Salmo 90, eu percebo que minha vida precisa estar ancorada no eterno. - Nossa vida é breve e frágil, mas significativa em Deus
A imagem da relva e do sono mostra que não somos tão fortes quanto pensamos. Porém, Deus pode dar sentido ao nosso tempo. - O pecado traz consequências reais, inclusive a morte
A ira de Deus mencionada no salmo é resultado da justiça contra o pecado. Isso me lembra da seriedade de viver uma vida santa. - Contar os dias é sabedoria, não desânimo
Saber que os dias são poucos não deve me entristecer, mas me motivar a viver com propósito, como também vemos em Efésios 5:15–16. - A verdadeira satisfação está no amor de Deus
Moisés pede para ser saciado pelo amor leal do Senhor. Eu também aprendo que só Deus pode preencher minha alma. - As próximas gerações precisam ver a glória de Deus
Moisés ora por seus filhos e pelos filhos do povo. Isso me desafia a viver de forma que minha fé influencie os que virão depois de mim. - O trabalho só tem valor quando Deus o confirma
Sem a bênção de Deus, nossas obras são frágeis. Mas com Ele, o que fazemos tem valor eterno, como também ensina 1 Coríntios 15:58.
Conclusão
O Salmo 90 nos leva a um confronto honesto com a realidade da vida: breve, marcada pela fragilidade e pela inevitabilidade da morte. Mas também nos leva à esperança. Moisés, diante da morte, não se desespera. Ele ora. Clama por compaixão, sabedoria, alegria e permanência. A resposta a essa oração está em Cristo.
Ao ler este salmo, eu sou lembrado de que, mesmo vivendo poucos anos, posso deixar um legado eterno se minha vida estiver firmada no Deus eterno. Contar os dias é o primeiro passo para viver com sabedoria.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 441–459.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 967–979.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 709.