Ezequiel 8 me ensina que Deus não abandona seu povo sem antes revelar por que seu juízo virá. A visão que o profeta tem é dolorosa. Ezequiel é transportado até o templo e testemunha, passo a passo, como a idolatria tomou o lugar da presença de Deus. Mas o que mais me impressiona é o contraste entre o que deveria ser santo e o que se tornou impuro. O Senhor mostra a Ezequiel — e a nós — que sua glória não habita em meio à infidelidade. E, mais que isso, Ele revela que sua saída não acontece de uma vez, mas em etapas, como um Deus paciente, mas profundamente ofendido.
Qual é o contexto histórico e teológico de Ezequiel 8?
A visão registrada em Ezequiel 8 ocorreu “no quinto dia do sexto mês do sexto ano do exílio” (Ez 8.1), o que corresponde a 17 ou 18 de setembro de 592 a.C. O profeta está em sua casa, na Babilônia, junto aos anciãos de Judá. Ali, repentinamente, “a mão do Soberano Senhor” cai sobre ele, e ele é transportado em visão até o templo de Jerusalém.
Segundo Daniel I. Block (2012), esse capítulo inicia uma longa sessão de visões que vai até Ezequiel 11.25, formando uma composição única, costurada com estrutura literária bem definida. Tudo gira em torno de um tema central: a glória de Yahweh está prestes a deixar o templo por causa das abominações cometidas ali.
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O templo que deveria ser a casa do Senhor (bêt-Yahweh), o lugar do trono de Deus, havia se tornado morada de ídolos e centro de cultos sincretistas. Como mostram Walton, Matthews e Chavalas (2018), essa substituição da adoração legítima por rituais estrangeiros não era algo raro no Oriente Próximo. Mas em Israel, violava frontalmente o pacto.
Os anciãos que visitam Ezequiel talvez esperassem uma profecia otimista — algo que contrariasse as mensagens de juízo de Jeremias. Mas, para sua surpresa, o profeta entra em transe e começa a relatar uma visão de julgamento e afastamento divino.
Como o texto de Ezequiel 8 se desenvolve?
1. Como começa a visão de Ezequiel? (Ezequiel 8.1–4)
Ezequiel vê “uma figura como a de um homem”, semelhante à visão do capítulo 1. De sua cintura para baixo, era como fogo; para cima, como metal brilhante. Essa manifestação gloriosa de Deus revela que a experiência é espiritual, mas não menos real. Ezequiel é agarrado “pelo cabelo” e levado em espírito a Jerusalém, especificamente à “porta do norte do pátio interno”, onde estava o “ídolo que desperta o zelo de Deus” (Ez 8.3).
Essa introdução cumpre três funções (BLOCK, 2012): estabelece o tempo, identifica a natureza da experiência como visionária e dá o pano de fundo para os eventos que virão. A referência à glória de Deus presente ali (v. 4) mostra que, apesar de tudo, Yahweh ainda está no templo — mas não por muito tempo.
2. O que representa o ídolo que desperta o ciúme? (Ezequiel 8.5–6)
A primeira cena apresenta uma imagem esculpida posicionada estrategicamente à entrada do pátio interno. Provavelmente se tratava de uma estátua ligada ao culto de Aserá (2Cr 33.7), uma deusa cananeia associada à fertilidade. A descrição como “ídolo que desperta o zelo” remete ao caráter de Yahweh como “Deus zeloso” (Dt 4.24), que não tolera rivais.
Essa imagem desafia diretamente o Senhor, pois se encontra em um lugar sagrado. A idolatria não está escondida — ela foi institucionalizada. Deus então diz: “Mas você verá práticas ainda piores” (v. 6), preparando o profeta (e o leitor) para a crescente gravidade das abominações.
3. O que revelam as imagens nas paredes e os incensários? (Ezequiel 8.7–13)
Na segunda cena, Ezequiel é conduzido até uma parede com um buraco. Ele escava, entra e se depara com “todo tipo de criaturas rastejantes e animais impuros”, além de “todos os ídolos da nação de Israel” esculpidos nas paredes (v. 10). Setenta anciãos estão ali, cada um diante de sua imagem, queimando incenso. Um deles é destacado: Jaazanias, filho de Safã.
Esse detalhe é significativo. Safã era um dos oficiais que apoiaram a reforma de Josias. Ao citar Jaazanias como filho dele, Ezequiel mostra como até mesmo descendentes de famílias piedosas haviam se corrompido. Segundo Block (2012), esse detalhe reforça a profundidade da apostasia: até líderes respeitáveis se entregaram ao culto idólatra.
A escuridão do local e a frase “Yahweh não nos vê” (v. 12) revelam a tentativa de ocultar a prática pecaminosa. Mas o próprio Deus está expondo tudo. A apostasia é racionalizada com a crença de que o Senhor abandonou a terra.
4. O que significa o lamento por Tamuz? (Ezequiel 8.14–15)
Na terceira cena, Ezequiel vê mulheres chorando por Tamuz. Essa era uma prática ligada à mitologia mesopotâmica. Tamuz, um deus da fertilidade, morria anualmente, e seu retorno à vida simbolizava a chegada da estação das chuvas.
Walton, Matthews e Chavalas (2018) explicam que os rituais de lamento por Tamuz envolviam choro simbólico para trazer fertilidade à terra. Ver essa prática diante da casa do Senhor indica um sincretismo profundo: Yahweh é substituído por deuses estrangeiros que prometem bênçãos imediatas.
A ausência de comentários divinos nessa cena mostra que a imagem fala por si: Israel havia deixado de confiar em Deus como provedor.
5. O que significa a adoração ao sol no templo? (Ezequiel 8.16–18)
Na cena final, Ezequiel vê vinte e cinco homens prostrados ao sol, com as costas voltadas para o templo. Essa atitude é extremamente simbólica. Dar as costas ao santuário é sinal de rejeição total. Eles adoram o sol, prática comum no Egito e em outras culturas pagãs, mas proibida em Israel (Dt 4.19).
Block (2012) afirma que essa é a maior abominação do capítulo. A rejeição deliberada da aliança é acompanhada por violência e injustiça social (v. 17). A expressão “colocam o ramo perto do nariz” é obscura, mas pode indicar um gesto de afronta ou adoração pagã. Seja como for, Yahweh responde com indignação: “Mesmo que gritem aos meus ouvidos… não os ouvirei” (v. 18).
Como Ezequiel 8 se cumpre no Novo Testamento?
Embora o capítulo 8 não traga uma profecia messiânica direta, ele ecoa um padrão que se cumpre em Cristo. O afastamento da glória de Deus do templo prenuncia o fim de uma era. Em João 2.19, Jesus anuncia: “Destruam este templo, e eu o reconstruirei em três dias”, referindo-se ao seu corpo. Isso mostra que a habitação de Deus não está mais restrita a construções físicas.
Em Mateus 23.37–38, Jesus lamenta Jerusalém e diz: “Eis que a casa de vocês ficará deserta”. O mesmo juízo profetizado por Ezequiel é reafirmado por Cristo: a glória de Deus deixa o templo, agora definitivamente.
O Novo Testamento ensina que os verdadeiros adoradores são aqueles que o fazem “em espírito e em verdade” (João 4.24). Não há mais espaço para idolatria, rituais sincretistas ou formalismo. Em Cristo, a presença de Deus habita em nós, e não em edifícios.
O que Ezequiel 8 me ensina para a vida hoje?
Ao ler Ezequiel 8, sou confrontado com o perigo do sincretismo. Israel não abandonou o culto totalmente — apenas o misturou com outras práticas. Isso é muito atual. Quantas vezes tentamos seguir a Deus e, ao mesmo tempo, confiar em outras “seguranças”? Carreira, dinheiro, reconhecimento, fórmulas humanas. A idolatria nem sempre tem forma de estátua. Às vezes, mora nos lugares escuros do coração.
Também aprendo que Deus não abandona seu povo sem aviso. Ele mostra, detalhadamente, por que sua presença está saindo. Yahweh não é impulsivo. Seu zelo é profundo, mas sua paciência também.
Outro ponto que me marca é a presença da glória divina ainda ali, mesmo cercada de idolatria. Deus não parte de uma vez. Ele se entristece. Ele mostra. Ele confronta. Mas quando sai, é porque foi rejeitado.
O silêncio de Deus diante de orações hipócritas me alerta: “Mesmo que gritem aos meus ouvidos… não os ouvirei” (v. 18). Não quero chegar a esse ponto. Quero manter o coração sensível e o altar puro.
Por fim, Ezequiel 8 me leva a olhar para dentro. Que imagens estão tomando o lugar de Deus no meu templo interior? O que estou racionalizando, como se Ele não visse? Preciso deixar o Espírito cavar paredes escondidas e me mostrar o que está por trás.
Referências
- BLOCK, Daniel I. O livro de Ezequiel. Tradução: Déborah Agria Melo da Silva et al. 1. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução: Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.
- Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2001.