O Salmo 42 abre o Livro 2 do Saltério (Salmos 42–72), também conhecido como Saltério Eloístico, pois o nome usado para Deus neste bloco é majoritariamente Elohim, e não Yahweh. Esse livro reúne composições de vários autores, incluindo os filhos de Corá, a quem este salmo é atribuído. Os coraitas eram levitas encarregados da música no templo (1Cr 6:22; 2Cr 20:19), e essa ligação com o culto público explica o tom melancólico de alguém separado do santuário.
Embora o título não mencione Davi, João Calvino argumenta que este salmo foi composto por ele e entregue aos filhos de Corá como guardiões litúrgicos, um padrão recorrente nos salmos atribuídos a ele (CALVINO, 2009, p. 246). Hernandes Dias Lopes, por outro lado, interpreta a autoria como dos próprios coraitas, músicos e adoradores levíticos (LOPES, 2022, p. 474). De toda forma, o lamento nasce de alguém exilado, impedido de participar do culto em Sião.
Segundo Lopes, o salmo expressa a dor de um adorador impedido de frequentar o templo, exilado geograficamente e espiritualmente. Ele se vê cercado por inimigos, zombarias e dúvidas internas. Seu lamento é também uma oração esperançosa. A estrutura poética e repetitiva sugere que os Salmos 42 e 43 formam uma única composição, o que é confirmado por manuscritos hebraicos antigos e pela repetição do mesmo refrão (42:5,11; 43:5).
A sede pela presença de Deus (Sl 42.1–2)
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“Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus.”
A figura da corça sedenta simboliza uma alma exaurida que busca alívio na presença do Deus vivo. Não se trata de sede por bênçãos, mas pelo próprio Deus. João Calvino destaca que essa metáfora representa a intensa necessidade de se conectar com Deus por meio dos meios de graça, como o culto e o templo, e não por mera devoção interna (CALVINO, 2009, p. 248).
O salmista não deseja um livramento imediato, mas o retorno à adoração pública, pois compreende que a vida espiritual é sustentada pela comunhão com Deus. Essa sede espiritual ecoa outras passagens do Saltério, como o Salmo 63, onde Davi, também exilado, diz: “A minha alma tem sede de ti”.
As lágrimas que alimentam a alma (Sl 42.3)
“Minhas lágrimas têm sido o meu alimento de dia e de noite…”
O sofrimento é constante. A ausência de comunhão pública e a zombaria dos inimigos transformam a vida do salmista em pranto ininterrupto. Ele não apenas sente a dor da exclusão, mas também da humilhação pública: “Onde está o seu Deus?”.
Calvino interpreta essa zombaria como uma tentativa satânica de destruir a fé do salmista, levando-o ao desespero espiritual (CALVINO, 2009, p. 253). Ao ler esse versículo, percebo que as palavras dos outros podem se tornar armas espirituais, mas a alma que confia em Deus encontra, mesmo no choro, um meio de orar.
A saudade da casa de Deus (Sl 42.4)
“Quando me lembro destas coisas, choro angustiado […] com cantos de alegria e de ação de graças…”
O salmista relembra com saudade os dias em que liderava o povo nas festas religiosas, em procissões que subiam a Jerusalém. A alegria do culto coletivo era uma realidade marcante em sua vida. Agora, esse contraste entre o passado glorioso e o presente de exílio aprofunda sua dor.
Hernandes Dias Lopes destaca que o culto era mais do que um rito; era a festa da alma redimida. Sem isso, o adorador sente-se minguar (LOPES, 2022, p. 477). Ao lembrar da assembleia, eu sou lembrado da importância da comunhão. O culto coletivo não é opcional; é vital.
O diálogo interior da alma (Sl 42.5)
“Por que você está assim tão triste, ó minha alma? […] Ponha a sua esperança em Deus!”
Este refrão é a chave do salmo. O salmista conversa consigo mesmo. Ele reconhece seu abatimento, mas não se entrega a ele. Ele ordena à sua alma que espere em Deus. Calvino interpreta esse momento como um conflito espiritual profundo, onde o salmista atua como seu próprio conselheiro, combatendo a incredulidade com esperança (CALVINO, 2009, p. 256).
Essa prática de confrontar a alma aparece também no Salmo 103: “Bendiga o Senhor a minha alma”. É um exercício necessário em tempos de dor.
A lembrança que fortalece (Sl 42.6–7)
“A minha alma está profundamente triste; por isso de ti me lembro […] Abismo chama abismo…”
O salmista está ao norte de Israel, longe do templo. As paisagens montanhosas e os rios caudalosos servem como metáfora para sua condição emocional: ondas de sofrimento que se sucedem. Allen P. Ross explica que essas imagens indicam um estado de desespero contínuo, como quem é engolido por uma tempestade (ROSS, 1985, p. 825).
Mesmo assim, ele se lembra de Deus. A geografia do exílio não o impede de invocar o Senhor. Eu aprendo que, mesmo em ambientes hostis, a memória da fidelidade de Deus pode ser nossa âncora.
A canção na noite escura (Sl 42.8)
“Conceda-me o Senhor o seu fiel amor de dia; de noite esteja comigo a sua canção…”
Este é um dos pontos de inflexão do salmo. Pela primeira vez, o nome Yahweh aparece. Em meio às trevas, o salmista se lembra da aliança. A música não desapareceu. A oração ainda é possível.
Hernandes Dias Lopes ressalta que, mesmo sem o templo, o salmista continua orando e cantando. A ausência dos meios públicos não anula a presença pessoal de Deus (LOPES, 2022, p. 479).
O lamento da alma oprimida (Sl 42.9–10)
“Direi a Deus, minha Rocha: ‘Por que te esqueceste de mim?’”
Apesar da confiança, a dor persiste. O salmista lamenta o silêncio de Deus e a agressividade dos inimigos. Calvino observa que essa tensão entre fé e desespero é normal na alma piedosa. A oração não elimina imediatamente a dor, mas a sustenta (CALVINO, 2009, p. 260).
A reafirmação da esperança (Sl 42.11)
“Por que você está assim tão triste, ó minha alma? […] ele é o meu Salvador e o meu Deus.”
O salmo termina como começou: com conflito interno. Mas agora há um tom de firmeza maior. A esperança não é uma emoção, mas uma decisão espiritual. Ross explica que a repetição do refrão marca o crescimento gradual da confiança, mesmo em meio à adversidade (ROSS, 1985, p. 826).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 42 não traga profecias explícitas sobre o Messias, seu conteúdo antecipa aspectos da experiência de Jesus. Como o salmista, Cristo foi zombado: “Confiou em Deus; livre-o agora” (Mateus 27:43). Ele também sentiu sede na cruz (João 19:28) e clamou em meio ao abandono.
Jesus, o verdadeiro adorador, foi privado do culto e da comunhão na cruz para que nós fôssemos reconciliados com Deus. O anseio do salmista pela presença divina se cumpre plenamente na encarnação de Cristo, que veio trazer Deus até nós.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 42
- Corça – Simboliza fragilidade, vulnerabilidade e sede vital. Representa a alma que reconhece sua dependência de Deus.
- Deus vivo – Expressa a ideia de um Deus ativo, presente, em contraste com os ídolos mortos.
- Abismo chama abismo – Metáfora para aflições sucessivas e avassaladoras.
- Rocha – Símbolo de estabilidade e segurança, mesmo quando a alma se sente esquecida.
- Canção à noite – Indica que a adoração pode continuar mesmo nas trevas da alma.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 42
- Quem ama a Deus sente saudade da comunhão com Ele – A ausência do culto pesa no coração do crente.
- A dor não anula a fé – Podemos clamar, lamentar e ainda confiar.
- Falar com a própria alma é espiritual – A fé raciocina consigo mesma e se lembra das promessas.
- O ambiente não define a presença de Deus – Mesmo longe de Jerusalém, o salmista ora e canta.
- A zombaria dos ímpios fere, mas não cala a fé – É possível resistir espiritualmente às acusações externas.
- Esperança é uma escolha diária – Precisamos lembrar à alma que ainda louvaremos a Deus.
- Deus é presente mesmo quando parece ausente – A fé se alimenta da memória e da aliança.
Conclusão
O Salmo 42 é o retrato fiel de uma alma abatida, mas não vencida. Um adorador separado do templo, mas não separado de Deus. Suas lágrimas se tornaram oração. Suas memórias, intercessão. E sua tristeza, terreno fértil para a esperança. Eu aprendo, ao lê-lo, que posso confiar em Deus mesmo quando não o vejo, e posso louvá-lo mesmo antes de ser restaurado. O salmo nos convida a transformar o exílio interior em altar, e a saudade em adoração.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 2, p. 246–263.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 473–482.
- ROSS, Allen P. “Psalms”. In: WALVOORD, J. F.; ZUCK, R. B. (Orgs.). The Bible Knowledge Commentary: An Exposition of the Scriptures. Wheaton, IL: Victor Books, 1985. v. 1, p. 825–826.