O Salmo 44 é atribuído aos filhos de Corá e pertence à coleção de salmos comunitários de lamento. Esse grupo de salmos se destaca por expressar a dor coletiva do povo de Israel em momentos de derrota, exílio ou opressão. Sua estrutura alterna entre louvor, lamento e súplica, revelando uma profunda tensão entre a fé do povo nas promessas de Deus e a realidade angustiante que enfrentavam.
Segundo o Comentário Histórico-Cultural da Bíblia, este salmo relata um período de derrota nacional e grande aflição, talvez durante os tempos finais da monarquia ou em um momento de invasão estrangeira (WALTON et al., 2018, p. 686). O povo experimenta uma crise teológica: embora permaneçam fiéis à aliança, estão sendo humilhados e derrotados. O sofrimento coletivo, portanto, não decorre de pecado, mas de um silêncio divino que desafia a lógica da retribuição.
Hernandes Dias Lopes aponta que “esse salmo é o lamento de alguém suspenso entre sua teologia e os fatos da vida” (LOPES, 2022, p. 486). Ele revela a dor de um povo que acredita em Deus, conhece seu poder libertador no passado, mas não compreende a razão do sofrimento presente. O Salmo 44 se destaca, assim, como uma confissão de fé em meio à perplexidade.
Um passado glorioso (Salmo 44:1–8)
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“Com os nossos próprios ouvidos ouvimos, ó Deus; os nossos antepassados nos contaram os feitos que realizaste no tempo deles.” (v. 1)
O salmista inicia com uma retrospectiva das ações de Deus em favor do povo. Ele destaca que os feitos não foram transmitidos por tradição vazia, mas por testemunho vívido dos antepassados. A conquista da Terra Prometida, por exemplo, foi resultado direto da ação divina e não de mérito humano (v. 2–3).
O versículo 3 afirma que a vitória veio “pela tua mão direita, pelo teu braço, e pela luz do teu rosto”. A imagem é carregada de simbolismo: o braço representa o poder, a mão direita a autoridade, e a luz do rosto, a graça e o favor divino.
Nos versículos 4 a 7, o salmista reconhece que a confiança está em Deus, não em armas humanas. Ele declara que “não confia em seu arco”, mas em Deus, que humilha os inimigos e concede a vitória. Isso é reafirmado no versículo 8: “Em Deus nos gloriamos o tempo todo”.
Como cristão, eu aprendo que as conquistas espirituais do passado não vieram da força humana, mas do favor divino. Lembrar disso me impede de me gloriar em mim mesmo.
Um presente desastroso (Salmo 44:9–16)
“Mas agora nos rejeitaste e nos humilhaste; já não sais com os nossos exércitos.” (v. 9)
A transição entre os versículos 8 e 9 é abrupta. O que era louvor se torna lamentação. Deus, que antes conduzia os exércitos de Israel, agora parece ausente. A dor é descrita com intensidade: derrota, humilhação, dispersão entre as nações e zombaria (v. 10–14).
O povo sente-se como “ovelhas destinadas ao matadouro” (v. 11). Essa imagem aparece também em Romanos 8:36, apontando para a realidade dos mártires cristãos. O salmista reconhece que a situação é desoladora, mas não compreende o motivo.
Champlin observa que “os sobreviventes fugiam para não serem derrotados até o último homem” (LOPES, 2022, p. 489). A vergonha é tamanha que até o rosto do salmista está coberto de humilhação (v. 15–16). Como cristão, aprendo que há momentos em que a dor espiritual não vem por erro, mas por razões que não compreendo. E mesmo assim, sou chamado a confiar.
Uma fidelidade inegociável (Salmo 44:17–22)
“Tudo isso aconteceu conosco, sem que nos tivéssemos esquecido de ti.” (v. 17)
A fidelidade do povo é afirmada com clareza. Eles não traíram a aliança, nem desviaram seus corações ou pés dos caminhos do Senhor (v. 17–18). Mesmo esmagados, permanecem firmes. É o sofrimento do justo.
Spurgeon afirma que “os santos não sofrem pelo pecado, mas pela justiça” (LOPES, 2022, p. 490). O povo entende que Deus conhece o coração e que, se tivessem se voltado a outros deuses, Ele saberia (v. 20–21).
O versículo 22 é emblemático: “por amor de ti enfrentamos a morte todos os dias”. Paulo usa essa passagem para mostrar que a fidelidade a Deus não exclui o sofrimento. Pelo contrário, o sofrimento, quando motivado pela fé, é uma honra.
Ao ler esses versículos, eu aprendo que minha fidelidade a Deus deve ser maior do que minhas circunstâncias. Mesmo em meio à dor, preciso continuar confiando.
Uma petição ousada (Salmo 44:23–26)
“Desperta, Senhor! Por que dormes?” (v. 23)
O salmista termina o salmo com uma súplica ousada. Ele clama a Deus como quem está dormindo. A imagem é chocante: o povo sofre e Deus parece ausente. Mas essa ousadia é, na verdade, um sinal de intimidade com o Senhor.
A pergunta do versículo 24 expressa a dor profunda: “Por que escondes o teu rosto e esqueces o nosso sofrimento?”. No versículo 25, o povo está humilhado até o pó. Mas o salmo termina com esperança: “Levanta-te! Socorre-nos! Resgata-nos por causa da tua fidelidade.” (v. 26)
Como cristão, aprendo que posso orar com ousadia. Deus não se ofende com minha dor sincera. Posso clamar, perguntar, gritar – Ele é meu Pai e me ouve.
Cumprimento das profecias
O versículo 22 é citado por Paulo em Romanos 8:36: “Por amor de ti enfrentamos a morte todos os dias; somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro.” O apóstolo usa essa citação para mostrar que o sofrimento não nos separa do amor de Deus. Pelo contrário, somos mais que vencedores.
Essa citação aponta para Cristo, que também foi contado entre os transgressores (Is 53:12) e, como Cordeiro, foi levado ao matadouro. O sofrimento injusto do povo de Deus no Antigo Testamento encontra seu eco na cruz de Jesus.
Assim, o Salmo 44 antecipa a realidade do sofrimento dos cristãos no mundo. Jesus mesmo afirmou: “No mundo tereis aflições” (Jo 16:33). Mas o fim é esperança e vitória.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 44
- Filhos de Corá – Descendentes de Corá, levitas responsáveis pela música no templo. Apesar do histórico negativo de seu antepassado (Nm 16), seus filhos foram instrumentos de adoração. Um exemplo de redenção dentro da história familiar.
- Braço do Senhor – Simboliza o poder de Deus em ação. No contexto da conquista da terra, representa intervenção sobrenatural (Sl 44:3).
- Luz do rosto de Deus – Expressa o favor divino. Quando Deus “esconde o rosto”, significa rejeição (v. 24). Quando sua luz brilha, há graça e bênção.
- Ovelhas para o matadouro – Imagem de sacrifício, submissão e aparente fragilidade. Aponta para o sofrimento dos justos e, em última instância, para Cristo.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 44
- Devemos lembrar dos feitos de Deus no passado – A tradição espiritual fortalece a fé. Precisamos contar aos nossos filhos o que Deus fez.
- A vitória espiritual não depende de nossa força – Como Israel, vencemos quando confiamos em Deus, não em nossas estratégias.
- Deus permite que o justo sofra – A dor não é sempre castigo. Muitas vezes, é o campo onde a fé é refinada.
- Nossa fidelidade não pode depender das circunstâncias – Israel permaneceu firme mesmo quando esmagado. Como cristão, eu sou chamado a perseverar.
- Deus conhece o coração – Mesmo quando as pessoas não entendem, Deus sabe se meu coração está firmado nele.
- Podemos orar com ousadia – Deus não se ofende com orações sinceras. Ele se compadece e responde no tempo certo.
- A fidelidade de Deus é o nosso fundamento – O salmista clama por livramento não por méritos, mas por causa da fidelidade divina.
Conclusão
O Salmo 44 é um retrato vívido do conflito entre fé e sofrimento. Ele nos mostra que é possível ser fiel e, ainda assim, passar por profundas dores. Ao ler este salmo, aprendo que a fé verdadeira não ignora a realidade, mas enfrenta a dor com esperança.
O salmista nos ensina que mesmo quando Deus parece ausente, podemos clamar com ousadia. Nossa confiança não está em nossas circunstâncias, mas na fidelidade do Senhor. E mesmo quando somos como ovelhas levadas ao matadouro, em Cristo, somos mais do que vencedores.
Referências
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.