O Salmo 59 está inserido num momento de tensão extrema da vida de Davi, antes mesmo de assumir o trono de Israel. O título hebraico original indica o contexto: “Quando Saul mandou que vigiassem a casa de Davi para matá-lo”. Esse episódio está registrado em 1 Samuel 19:11–17, quando o rei Saul, tomado pelo ciúme e pelo medo da crescente popularidade de Davi, ordenou que ele fosse assassinado. Davi, então, foi salvo pela intervenção de sua esposa, Mical.
Historicamente, esse salmo pertence ao período em que Davi era perseguido como um fora da lei, constantemente fugitivo, mesmo tendo sido fiel servo do rei. O teor do salmo é de súplica e confiança, e se encaixa na categoria dos salmos de lamento individual, embora termine com uma nota triunfante de louvor.
Teologicamente, o Salmo 59 reforça o conceito de Deus como refúgio elevado (v. 9, v. 16), um tema recorrente nos escritos davídicos. Ele apresenta Deus como Juiz sobre as nações (v. 5, v. 13), defensor dos justos e vingador contra os ímpios. O texto é uma poderosa oração por justiça, mas também um testemunho da fidelidade divina.
Conforme Walton, Matthews e Chavalas, a situação descrita “refere-se a um período anterior à ascensão de Davi ao trono, quando ele era um fora da lei” (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018, p. 695). Calvino também reconhece que Davi “não teria sido salvo exceto através da prodigiosa preservação divina” (CALVINO, 2009, p. 513).
O cerco do inimigo (Salmo 59:1–5)
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A oração de Davi começa com um apelo urgente: “Livra-me dos meus inimigos, ó Deus; põe-me fora do alcance dos meus agressores” (v. 1). Ele não apenas deseja ser salvo, mas elevado acima da ameaça, colocado em segurança. Como cristão, eu aprendo aqui que o primeiro passo diante da perseguição não é a vingança, mas a oração.
Nos versos seguintes, Davi afirma sua inocência. Ele não cometeu delito algum (v. 3), mas ainda assim é alvo de conspiração. Essa integridade se torna o fundamento de seu clamor, algo que Calvino ressalta ao dizer que “não podemos deixar de sentir maior liberdade em pleitear uma causa quando temos consciência de integridade” (CALVINO, 2009, p. 515).
Ao final dessa primeira seção, Davi amplia o foco da oração: pede justiça não só contra seus inimigos, mas também contra “todas as nações” (v. 5). Isso mostra que a oração ultrapassa o aspecto pessoal, expressando zelo pela glória de Deus entre os povos.
A matilha que espreita (Salmo 59:6–7)
Davi compara seus perseguidores a cães famintos que rondam a cidade ao entardecer. Eles uivam, rosnam e espalham medo com suas palavras. A descrição revela tanto a persistência do mal quanto a sua natureza vil.
Spurgeon interpreta esses homens como “vira-latas que uivam à noite de decepção” (LOPES, 2022, p. 637). Já Calvino destaca que eles “publicavam aos quatro ventos suas intenções, e se gabavam delas” (CALVINO, 2009, p. 518).
O versículo 7 mostra que a violência não se limita às mãos: “Seus lábios são como espadas”. A língua, neste salmo, é arma afiada usada para destruir reputações, difamar e ameaçar.
A confiança triunfante (Salmo 59:8–10)
No meio do cerco, Davi proclama uma certeza: “Tu, Senhor, vais rir deles” (v. 8). Esse é um contraste absoluto com a angústia dos versos anteriores. Deus não se assusta nem se desespera; Ele ri da arrogância dos ímpios.
Calvino explica que esse riso é uma figura para “o poder de Deus, que, sem o mínimo esforço, dissipa os planos do ímpio” (CALVINO, 2009, p. 519).
A seguir, Davi declara: “Ó tu, minha força, por ti vou aguardar” (v. 9). Esperar em Deus é um ato de fé. É a decisão de não revidar, mas confiar no alto refúgio. A confiança culmina no verso 10: “Deus me deixará ver meu desejo sobre meus inimigos”, ou seja, o livramento virá.
O lento declínio (Salmo 59:11–13)
Aqui, Davi pede que Deus não mate seus inimigos de imediato, mas os espalhe e os derrube gradualmente (v. 11). Seu objetivo é pedagógico: “para que o meu povo não o esqueça”. A justiça de Deus, quando processada lentamente, se torna uma lição viva.
Calvino afirma que “as duas coisas não são inconsistentes: primeiro que os juízos divinos sejam prolongados, e depois consumados” (CALVINO, 2009, p. 524). O verso 12 mostra que a boca continua sendo instrumento de destruição. Davi ora para que “pelos pecados de suas bocas, […] sejam apanhados em seu orgulho”.
No verso 13, ele clama pela destruição final: “consome-os até que não mais existam”. Esse é o clímax da oração por justiça, mas com um fim evangelístico: “então se saberá […] que Deus governa Jacó”. O juízo tem um propósito: tornar Deus conhecido.
A matilha faminta (Salmo 59:14–15)
Davi retoma a imagem dos cães. Eles voltam ao cair da tarde, famintos e frustrados. A repetição dessa metáfora indica continuidade da ameaça. Mas, agora, ela é acompanhada de ironia: eles procuram alimento, mas não se saciam.
Calvino destaca que esses versos mostram como “seriam obrigados a deitar-se, e a miséria de sua fome seria agravada” (CALVINO, 2009, p. 525). O ataque não surtirá efeito. A fúria dos ímpios será inútil diante da proteção divina.
O louvor triunfante (Salmo 59:16–17)
Apesar de tudo, Davi canta. “Cantarei louvores à tua força, de manhã louvarei a tua fidelidade” (v. 16). Mesmo cercado, ele declara vitória. Louvar pela manhã, após uma noite de tensão, é sinal de fé. A fidelidade de Deus não falhou.
O verso 17 repete: “tu és, ó Deus, o meu alto refúgio, o Deus que me ama”. Como cristão, eu aprendo que o louvor é mais forte que o medo, e que a fidelidade de Deus nos sustenta mesmo em noites escuras.
Cumprimento das profecias
O Salmo 59 não contém uma profecia messiânica direta, mas há paralelos importantes com o Novo Testamento. A imagem de Deus como “alto refúgio” reaparece em textos como 2 Tessalonicenses 3:3: “Mas o Senhor é fiel; ele os fortalecerá e os guardará do Maligno”.
O contraste entre a linguagem violenta dos ímpios e o livramento divino remete à figura de Cristo diante de seus acusadores, que “como ovelha muda, não abriu a boca” (Isaías 53:7).
Além disso, o louvor após o sofrimento é um tema que aparece fortemente na ressurreição: Jesus, mesmo perseguido até a morte, foi exaltado e glorificado, cumprindo o padrão apresentado por Davi.
Significado dos nomes e simbolismos
- Cães que uivam – Simbolizam inimigos persistentes, violentos, imprevisíveis. No mundo antigo, cães eram animais impuros e perigosos, o oposto da ideia de companheirismo atual.
- Deus dos Exércitos (Yahweh Tsevaot) – Nome que expressa soberania sobre todas as forças celestiais e terrenas. Indica que Deus lidera e vence todas as batalhas.
- Alto refúgio – Uma torre elevada, um lugar seguro, acima da linha do perigo. Representa o cuidado de Deus com os que nele confiam.
- Espadas nos lábios – Simbolizam palavras destrutivas, calúnias e violência verbal. É uma figura que aponta para a maldade disfarçada em discurso.
- Rosnados e uivos – Evocam o terror noturno, a sensação de estar cercado. Davi está dizendo que a ameaça é constante e opressora.
Lições espirituais e aplicações práticas
- Deus é nosso refúgio seguro – Mesmo em meio à perseguição mais implacável, podemos confiar que Ele nos coloca acima do perigo.
- Palavras podem matar – As palavras dos ímpios neste salmo são descritas como espadas. Como cristão, eu preciso zelar pela minha fala.
- A oração deve preceder a reação – Davi não revida de imediato. Ele ora, espera e louva. Esse é um modelo poderoso para tempos de conflito.
- A justiça de Deus é pedagógica – Deus não julga apenas para punir, mas para ensinar. O juízo é uma escola para os povos.
- O louvor fortalece a alma – Louvar no meio da crise não é negação da dor, mas afirmação da fidelidade divina.
- Deus se antecipa ao perigo – O “Deus da minha misericórdia me antecipará” (v. 10) mostra que o livramento vem antes da ruína.
- O justo canta enquanto o ímpio rosna – A diferença entre o servo de Deus e o inimigo é que um termina o dia em louvor, o outro em frustração.
Conclusão
O Salmo 59 é um grito de socorro, mas também uma canção de confiança. Davi, encurralado, ora, confia e canta. O cenário de sua casa cercada por inimigos se transforma num palco de fé e louvor. Como cristão, aprendo que em tempos de injustiça e perseguição, não devo apenas resistir – devo me refugiar em Deus, confiar em sua justiça e proclamar sua fidelidade.
Mesmo cercado por uivos e espadas, há segurança em Deus. Ele é o nosso alto refúgio, o Deus que nos ama.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, e Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 2.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 695.