O Salmo 60 está ligado a um momento de tensão geopolítica nos dias do rei Davi. Segundo o título original hebraico, foi composto “quando Davi lutava contra Arã-Naharaim e Arã-Zobá, e quando Joabe, ao voltar, matou doze mil edomitas no vale do Sal” (2 Samuel 8:3–14). Esse salmo de lamento reflete as derrotas sofridas por Israel antes das vitórias finais registradas em 2 Samuel e 1 Crônicas.
Davi já era rei, mas ainda enfrentava resistências internas e externas. Seu reinado sucedeu o de Saul, que deixou Israel em crise: instabilidade política, invasões inimigas e divisão interna. Em meio a esse cenário, Davi enfrentava coalizões de inimigos – sírios ao norte, edomitas ao sul, filisteus a oeste e moabitas a leste. As derrotas momentâneas eram entendidas como resultado da disciplina de Deus.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “a causa da derrota não está na fraqueza do exército, mas na ausência de Deus” (LOPES, 2022, p. 643). O salmo reconhece essa realidade e clama por restauração. Ele nos conduz da dor da disciplina à esperança da salvação divina, e mistura lamento, petição, declaração de fé e confiança no agir soberano de Deus.
A estrutura do Salmo 60 alterna entre súplica (vv. 1–5), oráculo divino (vv. 6–8) e confiança renovada (vv. 9–12). Trata-se de um texto profundamente teológico, com ênfase na soberania de Deus sobre Israel e as nações vizinhas.
Rejeição e caos nacional (Sl 60:1–3)
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“Tu nos rejeitaste e nos dispersaste, ó Deus; tu derramaste a tua ira; restaura-nos agora!” (v. 1)
O salmo começa com uma confissão dolorosa: Israel foi rejeitado por Deus. A linguagem é direta e ousada. Davi não tenta suavizar os fatos. A derrota em campo de batalha é interpretada como sinal da ira divina. A palavra “rejeitaste” sugere abandono, enquanto “dispersaste” expressa o colapso da unidade nacional.
No verso 2, Davi usa a imagem de um terremoto para descrever a instabilidade: “Sacudiste a terra e abriste-lhe fendas”. Ele ora por reparação, pois a nação ameaça desmoronar.
O verso 3 fala do “vinho estonteante”, uma metáfora forte que descreve como Deus fez seu povo cambalear. Segundo Walton, “o poder da ira de Deus é comparado a uma taça de vinho que estonteia os israelitas, tornando-os impotentes” (WALTON et al., 2018, p. 695). Trata-se de disciplina divina, não destruição final.
Esperança no estandarte divino (Sl 60:4–5)
“Mas aos que te temem deste um sinal para que fugissem das flechas” (v. 4)
Apesar da dor, há um sinal de esperança. Deus não abandonou completamente os que o temem. O “sinal” pode ser entendido como um estandarte, usado para agrupar e orientar as tropas (cf. Jeremias 4:6).
Davi ora no verso 5 pedindo livramento para “os teus amados”. Ele sabe que a salvação vem da “tua mão direita”, símbolo de poder e ação. A oração reconhece a urgência da situação e clama por resposta imediata.
O oráculo de Deus: domínio sobre a terra (Sl 60:6–8)
“Do seu santuário Deus falou: ‘No meu triunfo dividirei Siquém e repartirei o vale de Sucote.’” (v. 6)
Agora é Deus quem fala. O oráculo afirma seu direito soberano sobre a terra de Israel. Siquém e Sucote, localizadas em lados opostos do Jordão, representam toda a extensão da Terra Prometida.
Segundo Walton, “era direito de Yahweh dividir Siquém como recompensa de guerra àqueles que lhe eram fiéis” (WALTON et al., 2018, p. 695). Deus está reafirmando sua aliança com Israel.
No verso 7, Gileade e Manassés representam a região transjordânica. Efraim, ao norte, é descrito como capacete, símbolo de defesa. Judá, ao sul, é o cetro, símbolo de governo. Como cristão, eu aprendo aqui que a segurança e a liderança do povo de Deus vêm dele mesmo.
O verso 8 apresenta imagens simbólicas e sarcásticas: “Moabe é a pia em que me lavo; em Edom atiro a minha sandália; sobre a Filístia dou meu brado de vitória!” São metáforas de domínio e humilhação. Moabe é reduzido à posição de servo, Edom é conquistado legalmente, e Filístia é derrotada com júbilo. Essas nações que antes ameaçavam agora são subjugadas pelo poder divino.
Nova súplica pela vitória (Sl 60:9–11)
“Quem me levará à cidade fortificada? Quem me guiará a Edom?” (v. 9)
Após o oráculo, Davi retoma a súplica. Ele reconhece que, por si só, não pode conquistar Edom. O verso 10 sugere que Deus ainda estava afastado: “Não foste tu, ó Deus, que nos rejeitaste?” A ausência divina é o maior obstáculo à vitória.
O verso 11 expressa dependência: “Dá-nos ajuda contra os adversários, pois inútil é o socorro do homem.” Aqui há uma confissão clara: forças humanas são insuficientes. Como cristão, eu aprendo que a vitória espiritual não é fruto de habilidade, mas da intervenção divina.
Confiança restaurada (Sl 60:12)
“Com Deus conquistaremos a vitória, e ele pisoteará os nossos adversários.” (v. 12)
O salmo termina com fé renovada. Davi confia que Deus não apenas restaurará Israel, mas também trará vitória. A imagem de Deus pisoteando os inimigos lembra a linguagem de Romanos 16:20: “em breve o Deus da paz esmagará Satanás debaixo dos pés de vocês”.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 60 tenha uma aplicação imediata no contexto de Davi, ele ecoa princípios que se cumprem no Novo Testamento. O conceito de “estandarte” levantado por Deus é retomado em Jesus, que disse: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (João 12:32). Cristo se torna o verdadeiro estandarte para os que temem ao Senhor.
A imagem de Deus conquistando as nações também aponta para o reinado messiânico. Em Filipenses 2:10–11, toda língua confessará que Jesus é Senhor, e todo joelho se dobrará. O brado de vitória sobre a Filístia antecipa o triunfo final do Messias sobre seus inimigos.
Além disso, a expressão de confiança no verso 12 encontra paralelo em Romanos 8:37: “em todas estas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou.”
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 60
- Siquém – Cidade central da Palestina, ligada às promessas da aliança (Gn 12:6; 33:18–20). Seu nome aparece nos registros de El Amarna, reforçando sua importância estratégica (WALTON et al., 2018, p. 695).
- Sucote – Localizada a leste do Jordão, associada à peregrinação de Jacó (Gn 33:17). Região fértil e significativa na tradição da aliança.
- Gileade e Manassés – Representam a herança das tribos transjordânicas. Gileade é mencionada em Números 32 como território dado a Gade e metade de Manassés.
- Efraim e Judá – Efraim como “capacete” indica defesa; Judá como “cetro” aponta para liderança e autoridade. Ambos simbolizam o poder político-militar de Israel.
- Moabe, Edom e Filístia – Nações vizinhas hostis. Moabe é rebaixado à função de servo; Edom é conquistado simbolicamente com o gesto da sandália (cf. Rt 4:7–8); Filístia é objeto de celebração.
- Sandália – Símbolo de posse e herança. Atirar a sandália em Edom representa conquista e domínio legal (Dt 25:9; WALTON et al., 2018, p. 697).
- Cidade fortificada – Possível referência a Bozra, principal cidade de Edom, identificada com Petra, quase inacessível. Davi a vê como desafio, mas crê que com Deus pode vencê-la (LOPES, 2022, p. 648).
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 60
- A maior perda é a ausência de Deus – Quando Deus se afasta, até os exércitos mais fortes fracassam. A presença divina é nosso bem mais precioso.
- A disciplina de Deus é pedagógica, não destrutiva – O vinho estonteante e os reveses mostram que Deus corrige com o propósito de restaurar.
- A oração sincera restaura a comunhão – Davi não esconde sua dor, mas clama com fé. Como cristão, eu aprendo que a restauração começa com confissão e súplica.
- A soberania de Deus é ampla e detalhada – Ele define fronteiras, distribui funções e conquista nações. Nada foge ao seu controle.
- A vitória não vem de alianças humanas, mas do braço do Senhor – O socorro do homem é vão. Somente Deus pode garantir livramento verdadeiro.
- A fé se renova na oração – O salmo começa com lamento e termina com confiança. Essa transformação acontece quando colocamos tudo diante de Deus.
Conclusão
O Salmo 60 é uma oração poderosa em tempos de crise. Ele não nega a dor, mas a transforma em súplica e confiança. Davi reconhece que a derrota vem da mão de Deus, e não apenas das forças inimigas. No entanto, é a esse mesmo Deus que ele recorre.
Ao ler o Salmo 60, eu aprendo que Deus disciplina, mas também restaura. Ele rejeita, mas ouve. Ele se afasta, mas volta quando seu povo clama. Em tempos de guerra, espirituais ou literais, nosso maior recurso não está nos homens, mas na mão direita do Senhor. E com Ele, somos mais que vencedores.
Referências
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução de Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 695–697.