O Salmo 70 é atribuído a Davi e carrega uma peculiaridade: ele repete, com pequenas variações, os versículos finais do Salmo 40 (vv. 13–17). É, portanto, um salmo “reutilizado”, o que não diminui seu valor. Pelo contrário, mostra que determinadas orações e súplicas foram tão marcantes que mereceram nova aplicação em outro momento da vida de fé.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “os cinco versículos do Salmo 70 formam os cinco últimos versículos do Salmo 40. Allan Harman sugere que esses versículos foram tirados de seu contexto original e usados em um momento de grande aflição” (LOPES, 2022, p. 749). Já Derek Kidner aponta para uma provável razão editorial: a junção de coleções separadas de salmos (LOPES, 2022, p. 749).
João Calvino também observa que este salmo é uma “mera parte do 40” e que foi ajustado por Davi para ser reutilizado em uma ocasião específica. A inscrição “para trazer à memória” (v. 1) sugere a intenção de manter viva a súplica diante de um perigo iminente (CALVINO, 2009, p. 44).
Neste breve salmo, Davi clama com urgência por livramento. É uma oração marcada por tensão, perseguição e confiança. Enquanto lamenta a crueldade dos inimigos, ele reafirma sua fé no Deus que pode libertá-lo. É um salmo direto, fervoroso e cheio de intensidade emocional.
Pedido urgente de livramento (Sl 70.1)
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“Livra-me, ó Deus! Apressa-te, Senhor, a ajudar-me!”
Davi inicia com um clamor direto. Ele não se perde em introduções. Sua oração é um grito de socorro. O uso do imperativo revela urgência. Não há tempo para fórmulas. A alma está em agonia.
Ao ler esse verso, eu percebo como a oração sincera pode ser simples. Quando estamos aflitos, não precisamos de discursos elaborados. Apenas de fé.
Spurgeon observa que “não nos é proibido, nas horas de angústia medonha, pedir que Deus se apresse em nos salvar” (LOPES, 2022, p. 750). O salmista reconhece que somente Deus pode agir a tempo.
Clamor por justiça contra os inimigos (Sl 70.2–3)
“Sejam humilhados e frustrados os que procuram tirar-me a vida; retrocedam desprezados os que desejam a minha ruína. Retrocedam em desgraça os que zombam de mim.”
Aqui, Davi descreve seus adversários em três dimensões: assassinos (v. 2a), perversos (v. 2b) e escarnecedores (v. 3). Eles não apenas querem sua destruição física, mas se alegram com sua dor.
Ao orar para que esses inimigos sejam humilhados, Davi não age por vingança pessoal, mas clama por justiça. Ele deseja que a maldade não prospere.
Spurgeon interpreta o verso 2 como um pedido para que “a maldade desapontada seja tão desoladora quanto a maldade realizada” (LOPES, 2022, p. 751). Calvino reforça que esses versículos são expressões de recompensa justa, não de ódio (CALVINO, 2009, p. 44).
Davi não nega a existência da zombaria. Os que dizem “Ah! Ah!” (v. 3, na ARC; “Bem feito!” na NVI) representam o desprezo cruel dos que se divertem com a dor alheia.
Exaltação e alegria para os que buscam a Deus (Sl 70.4)
“Mas regozijem-se e alegrem-se em ti todos os que te buscam; digam sempre os que amam a tua salvação: ‘Como Deus é grande!’”
O tom muda. Do pedido contra os inimigos, Davi passa a interceder pelos amigos de Deus. Ele deseja que os que buscam ao Senhor experimentem alegria e tenham sempre em seus lábios louvor.
Eu aprendo que a oração não pode se limitar à dor pessoal. Ela deve incluir intercessão pelos outros. Mesmo em sofrimento, Davi não se esquece dos que andam com Deus.
Spurgeon comenta que “a ira contra os inimigos não deve nos fazer esquecer dos amigos” (LOPES, 2022, p. 753). A verdadeira piedade é inclusiva.
A frase “Deus seja magnificado” é um contraponto à zombaria do versículo anterior. Enquanto os ímpios dizem “Bem feito!”, os justos exclamam: “Como Deus é grande!”.
Confissão de pobreza e reafirmação da esperança (Sl 70.5)
“Quanto a mim, sou pobre e necessitado; apressa-te, ó Deus. Tu és o meu socorro e o meu libertador; Senhor, não te demores!”
O salmo termina como começou: com um apelo urgente. Davi se reconhece como pobre e necessitado. Essa humildade é fundamental. Ele não se vê como herói, mas como alguém vulnerável que precisa de ajuda.
Paulo ecoa esse princípio em 2 Coríntios 12:10: “Quando sou fraco, então é que sou forte”. Ao reconhecer sua pobreza, Davi encontra força em Deus.
Spurgeon declara que “a nossa pobreza é a nossa riqueza, ao mesmo tempo que a nossa fraqueza é a nossa força” (LOPES, 2022, p. 752).
Eu me identifico com esse verso. Em dias de desânimo, ele me lembra que Deus não ignora os necessitados. Ele é socorro bem presente.
Cumprimento das profecias
O Salmo 70, embora não traga citações messiânicas diretas, carrega paralelos com a vida de Cristo.
Jesus também foi perseguido, zombado e teve sua vida injustamente ameaçada. As palavras “Bem feito!” (v. 3) ecoam no escárnio da cruz: “Salvou os outros, mas não é capaz de salvar a si mesmo!” (Mateus 27:42).
Assim como Davi, Jesus clamou com urgência: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus 27:46). A súplica por livramento, a entrega completa e a humilhação estão todas presentes.
Além disso, a frase “Tu és o meu libertador” antecipa o clamor final de Jesus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lucas 23:46).
Portanto, o Salmo 70 pode ser lido como um prenúncio das orações de Cristo na agonia. É a voz do Justo clamando a Deus, confiando apesar da dor.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 70
- Evocar a lembrança – A inscrição do salmo indica um apelo urgente à memória de Deus. É uma súplica para que Ele aja com pressa, lembrando-se de seu servo. No hebraico, lehazkir pode ter conotações litúrgicas de memorial.
- Pobre e necessitado – Expressão usada por Davi para descrever sua fragilidade. Reflete humildade espiritual e dependência completa de Deus.
- Apressa-te, Senhor – Repetida duas vezes (vv. 1 e 5), simboliza a urgência do socorro divino. Em tempos de crise, a alma anseia por uma resposta imediata.
- Zombaria (“Bem feito!”) – No hebraico, heach, heach, é uma interjeição de escárnio. Simboliza a crueldade daqueles que se alegram com a desgraça alheia.
- Seja Deus magnificado – Essa doxologia é uma expressão de adoração contínua. Indica a centralidade da glória divina mesmo em meio à dor.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 70
- A oração pode ser simples e urgente – Em tempos de angústia, orações curtas e diretas, como “Livra-me, Senhor”, são suficientes.
- Deus não se esquece dos necessitados – Mesmo quando nos sentimos pobres e desamparados, Ele é o nosso libertador.
- A fé verdadeira inclui intercessão pelos outros – Mesmo perseguido, Davi orou pelos que amavam a Deus.
- A zombaria dos ímpios não define o final da história – Deus transforma a vergonha dos fiéis em louvor.
- A humildade abre caminho para o socorro divino – Ao reconhecer sua necessidade, Davi se torna um modelo de confiança.
- Louvar em meio à crise é um ato de fé poderoso – Quando exaltamos a Deus no vale, fortalecemos os que nos cercam.
- Clamar com insistência não é falta de fé, mas prova de dependência – Davi pediu pressa, mas jamais duvidou do caráter de Deus.
- Deus é digno de ser magnificado em todo tempo – Mesmo sem resposta imediata, a adoração deve ser contínua.
Conclusão
O Salmo 70 é uma oração curta, mas intensa. Ele nos ensina que, em tempos de angústia, o clamor pode ser direto, a fé pode coexistir com a urgência, e a adoração deve permanecer, mesmo quando os inimigos zombam.
Ao ler este salmo, eu aprendo que a alma aflita não precisa de discursos elaborados, mas de um coração sincero diante de Deus. E que, mesmo quando tudo parece perdido, Deus é o socorro que não falha. Ele não se atrasa, ainda que aos nossos olhos pareça demorado.
Como Davi, também podemos dizer: “Senhor, não te demores!”.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho, Francisco Wellington Ferreira. Trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 44.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 749–754.