O Salmo 78 é atribuído a Asafe, levita e principal músico do santuário nos dias de Davi (1Cr 6:39; 25:1). Ele faz parte do terceiro livro do Saltério (Salmos 73–89) e é o segundo maior salmo da Bíblia, atrás apenas do Salmo 119. O tom é claramente didático e histórico. É uma narrativa poética dos atos de Deus e das constantes falhas do povo de Israel ao longo de quase 500 anos de história, desde o Êxodo até a escolha de Davi.
O objetivo do salmo é despertar a consciência espiritual da nação. Como afirma Hernandes Dias Lopes, “o salmista narra com crueza a rebeldia do povo da aliança” (LOPES, 2022, p. 837). Ao mesmo tempo, também aponta para a graça paciente de Deus, que mesmo diante da infidelidade, continua sendo fiel.
O versículo 2 menciona o uso de “parábolas” (mashal, no hebraico), palavra que também pode significar provérbio, enigma ou alegoria. Ela revela o caráter instrutivo e simbólico do salmo. O próprio Jesus cita esse versículo em Mateus 13.35, indicando seu cumprimento messiânico (WALTON et al., 2018, p. 703).
1. O chamado à instrução (Sl 78.1–8)
>>> Inscreva-se em nosso Canal no YouTube
Asafe começa com um apelo pastoral: “Escute o meu ensino; incline os ouvidos”. Ele chama o povo à escuta ativa, com atenção e reverência. Ele vai contar o que aprendeu de seus pais, e deseja que as gerações futuras também conheçam.
O versículo 4 deixa claro que a fé não deve ser ocultada, mas anunciada. O testemunho precisa passar de pais para filhos (Dt 6.4–9). Como cristão, eu entendo que discipular os filhos é responsabilidade dos pais, não apenas da igreja (Ef 6.4).
A fé é como um bastão passado de mão em mão. Se a geração atual falha, as próximas viverão na escuridão. Esse trecho lembra a importância da educação cristã sólida, intencional e constante.
2. O fracasso de Efraim (Sl 78.9–11)
A menção a Efraim, a tribo mais forte do Reino do Norte, representa o fracasso espiritual de Israel. Eles estavam armados, mas viraram as costas na batalha. A razão não era falta de força, mas infidelidade à aliança.
Eles esqueceram as maravilhas de Deus, e a negligência da memória espiritual sempre precede o colapso da fé. O esquecimento não era inocente, mas fruto da rejeição deliberada da lei do Senhor.
Esse trecho me confronta: quando deixo de lembrar quem Deus é e o que Ele fez, fico vulnerável, mesmo se tudo parecer estar “em ordem” do lado de fora.
3. A fidelidade de Deus no Egito e no deserto (Sl 78.12–16)
Asafe volta aos dias do Egito, mencionando Zoã, uma das capitais do Delta. Lá, Deus realizou milagres (Êx 7–11). Ele dividiu o Mar Vermelho (Êx 14), guiou com nuvem e fogo (Êx 13.21–22) e fez brotar água da rocha (Êx 17; Nm 20).
Mesmo assim, o povo continuou cego. Como diz o apóstolo Paulo, “essas coisas aconteceram como exemplo” (1Coríntios 10:11). Quando não valorizamos o que Deus já fez, pedimos por sinais que já recebemos.
4. A rebeldia persistente (Sl 78.17–31)
Mesmo vendo os milagres, os israelitas provocaram a Deus. Exigiram carne com insolência. Deus lhes deu maná (Êx 16.4–9), o pão dos anjos, mas isso não bastava. Queriam mais. Deus então enviou codornizes (Nm 11.31–34), mas também juízo.
“Antes de saciarem o apetite, quando ainda tinham a comida na boca…” (v. 30). A fúria de Deus se acendeu, e os mais fortes morreram. Como cristão, aprendo que nem todo desejo deve ser atendido. Às vezes, Deus responde orações para nos disciplinar, não nos agradar.
5. O falso arrependimento (Sl 78.32–39)
Apesar de tudo, o povo persistiu no pecado. Quando o juízo caía, eles “se voltavam para Deus” (v. 34), mas era uma conversão superficial. Lábios se moviam, mas o coração permanecia longe.
Mesmo assim, Deus os perdoava. “Lembrou-se de que eram meros mortais” (v. 39). A misericórdia dEle é maior que nossa hipocrisia. Como em 2 Coríntios 5:19, “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo”. A reconciliação é sempre iniciativa dEle.
6. O juízo contra o Egito (Sl 78.40–51)
Asafe recapitula os sinais do Êxodo: rios em sangue, rãs, moscas, gafanhotos, granizo, peste e morte dos primogênitos (Êx 7–12). Essas pragas tinham dois propósitos: julgar os deuses egípcios e libertar o povo de Deus.
Cada praga é descrita de forma poética e poderosa. A menção a “anjos destruidores” (v. 49) mostra que o juízo foi executado com precisão. Mesmo assim, enquanto os egípcios morriam, Israel era conduzido como um rebanho protegido (v. 52).
7. Na terra prometida, mas sem arrependimento (Sl 78.52–64)
Deus levou o povo até a Terra Prometida, expulsou nações, distribuiu herança (Js 11.23). Mas os israelitas voltaram a pecar, levantaram altares idólatras e provocaram a ira de Deus (Jz 2.10–13).
Siló, onde ficava o tabernáculo, foi abandonado. A Arca da Aliança foi levada pelos filisteus (1Sm 4:10–22), e o povo sofreu uma derrota humilhante. Foi-se a glória de Deus. O nome Icabode ecoa como lamento (1Sm 4.21).
Spurgeon declarou: “Igrejas em erro tornam-se igrejas em apostasia” (LOPES, 2022, p. 849). A presença de Deus não é garantida onde há idolatria.
8. Um novo começo com Judá e Davi (Sl 78.65–72)
A última seção do salmo apresenta a reviravolta divina. Deus “despertou como um guerreiro”, derrotou os inimigos e rejeitou Efraim. Escolheu Judá, Sião e Davi.
Davi é retirado do pastoreio e colocado como líder de Israel. Ele é símbolo do pastor ideal: coração íntegro e mãos experientes. Esse retrato é cumprido plenamente em João 10:11, quando Jesus diz: “Eu sou o bom pastor”.
Cumprimento das profecias
O Salmo 78 aponta para o Messias em diversas formas. A menção ao ensino por parábolas (v. 2) é citada em Mateus 13:35 como profecia sobre o método de ensino de Jesus. A rejeição de Efraim e escolha de Judá prefiguram a mudança da antiga aliança para a nova, centrada em Cristo, o Filho de Davi (Lc 1:32–33).
Davi como pastor e líder é uma sombra do verdadeiro Pastor-Rei, que guia com mãos experientes e coração perfeito (Ez 34:23; Hb 13:20).
Significado dos nomes e simbolismos
- Parábolas (mashal) – Ensinos simbólicos e didáticos, usados para transmitir sabedoria (WALTON et al., 2018, p. 703).
- Zoã – Cidade egípcia de Tânis, palco das pragas do Egito.
- Siló – Centro do culto antes de Jerusalém. Tornou-se símbolo de rejeição por infidelidade.
- Efraim – Tribo forte, mas infiel. Representa o fracasso do Reino do Norte.
- Maná e codornizes – Provisão divina no deserto, símbolo da dependência de Deus.
- Arca da Aliança – Presença de Deus. Sua perda simboliza abandono espiritual.
- Davi como pastor – Prefiguração de Cristo como o Bom Pastor.
Lições espirituais e aplicações práticas
- Educar a próxima geração é um dever espiritual (Sl 78.4–6; 2Tm 2.2)
- Força sem fidelidade não resiste (Sl 78.9–10)
- A incredulidade bloqueia a ação de Deus (Sl 78.17–22)
- Arrependimento superficial não muda o coração (Sl 78.36–37)
- A misericórdia de Deus é maior que nossa infidelidade (Sl 78.38–39)
- A presença de Deus pode se retirar quando há rebeldia contínua (Sl 78.60–61)
- Cristo é o Bom Pastor que nos guia com coração íntegro (Sl 78.70–72; Jo 10.11)
Conclusão
O Salmo 78 é um espelho espiritual para todo cristão. Ele nos mostra que a fidelidade de Deus não apaga sua justiça, e que o verdadeiro arrependimento deve ser sincero. Ao ler este salmo, eu percebo como a história pode ser uma mestra ou uma juíza. A escolha está em como reagimos ao que Deus já fez.
Ao meditarmos no Salmo 78, somos desafiados a lembrar, obedecer, ensinar e viver uma fé íntegra. E ao olhar para Davi, vemos o reflexo do verdadeiro Pastor: Jesus Cristo, que guia com mãos sábias e coração fiel.
Referências
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 837–851.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 703.