O Salmo 79 é um lamento coletivo escrito por Asafe, e tem como pano de fundo a destruição de Jerusalém e a profanação do templo. A tragédia descrita no texto se refere, com alta probabilidade, à invasão babilônica de 587 a.C., quando a cidade foi arrasada e o templo, destruído (2Rs 25:8–10).
John Walton observa que essa foi a única vez, no Antigo Testamento, que o templo foi profanado e a cidade de Jerusalém reduzida a ruínas (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018, p. 703).
Hernandes Dias Lopes chama esse salmo de “a canção fúnebre de uma nação” (LOPES, 2022, p. 854). Já Warren Wiersbe conecta o Salmo 79 ao fluxo dos Salmos 77 e 78: Deus libertou o povo do Egito, conduziu-o pelo deserto, deu-lhes a terra prometida, e agora, por causa da desobediência, os mesmos estão exilados, sob juízo.
O salmo também compartilha paralelos com o Salmo 74, tanto em seu autor como no tema. Ambos tratam da destruição do santuário e da humilhação pública de Israel. Derek Kidner observa que esse salmo é um grito de fé, e não de dúvida. É uma oração nascida da dor, mas cheia de esperança.
1. A dor da destruição e do escárnio (v. 1–4)
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O salmista começa seu lamento com uma descrição trágica: “Ó Deus, as nações invadiram a tua herança, profanaram o teu santo templo, reduziram Jerusalém a ruínas.” (v. 1). A terra, o templo e a cidade – todos considerados sagrados – foram entregues ao saque. Como cristão, eu percebo aqui que nem mesmo o lugar mais santo está isento de disciplina, quando o povo quebra a aliança.
A violência dos invasores é descrita em detalhes: “Deram os cadáveres dos teus servos às aves do céu por alimento, a carne dos teus fiéis, aos animais selvagens.” (v. 2). Na cultura hebraica, o sepultamento era um ato de honra. Ser deixado insepulto representava maldição. Calvino destaca que isso não era apenas indignidade, mas um testemunho público da ira de Deus (CALVINO, 2009, p. 96).
O autor continua: “Derramaram o sangue deles como água ao redor de Jerusalém, e não há ninguém para sepultá-los.” (v. 3). O sangue humano, tratado como algo sem valor, denuncia a brutalidade dos inimigos e a desolação dos sobreviventes.
Para completar o quadro, Asafe lamenta: “Somos motivos de zombaria para os nossos vizinhos, de riso e menosprezo para os que vivem ao nosso redor.” (v. 4). Essa zombaria é semelhante àquela descrita em Lamentações 2:15–16, quando os inimigos de Judá batiam palmas e diziam: “É esta a cidade chamada perfeita em beleza?”. A vergonha pública era parte do juízo.
2. Um clamor diante da ira divina (v. 5–8)
A dor do povo se transforma em súplica: “Até quando, Senhor? Ficarás irado para sempre? Arderá o teu ciúme como o fogo?” (v. 5). Essa expressão é recorrente nos salmos de lamento (como no Salmo 13), e revela o peso da disciplina prolongada. Walton observa que esse mesmo clamor aparece em fontes mesopotâmicas, como o Lamento pela destruição da Suméria (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018, p. 704).
Asafe, então, redireciona o pedido: “Derrama a tua ira sobre as nações que não te reconhecem, sobre os reinos que não invocam o teu nome.” (v. 6). Para Calvino, isso não expressa vingança pessoal, mas zelo pelo nome de Deus (CALVINO, 2009, p. 99). O salmista quer ver justiça: que o mesmo Deus que corrige seus filhos também puna os inimigos impiedosos.
A justificativa aparece no versículo seguinte: “Pois devoraram Jacó, deixando em ruínas a sua terra.” (v. 7). A ação dos caldeus foi de destruição completa. Eles não se limitaram a vencer uma batalha; devastaram a herança do Senhor.
Em arrependimento, o povo clama: “Não cobres de nós as maldades dos nossos antepassados; venha depressa ao nosso encontro a tua misericórdia, pois estamos totalmente desanimados!” (v. 8). Como cristão, eu aprendo que o arrependimento verdadeiro reconhece tanto os pecados presentes quanto os legados do passado. Essa confissão lembra as orações de Daniel 9:4–19, quando o profeta intercede por Judá, mencionando a culpa dos pais e a necessidade de misericórdia urgente.
3. Um pedido por redenção e justiça (v. 9–12)
A súplica por livramento se intensifica: “Ajuda-nos, ó Deus, nosso Salvador, para a glória do teu nome; livra-nos e perdoa os nossos pecados, por amor do teu nome.” (v. 9). Spurgeon, citado por Hernandes Dias Lopes, comenta que esse é um argumento poderoso, pois apela à glória de Deus, e não ao mérito humano (LOPES, 2022, p. 859).
O povo está preocupado com a reputação do Senhor entre os pagãos: “Por que as nações haverão de dizer: ‘Onde está o Deus deles?’ Diante dos nossos olhos, mostra às nações a tua vingança pelo sangue dos teus servos.” (v. 10). Esse mesmo apelo aparece no Salmo 115:2. Quando o nome de Deus é desonrado, seus filhos podem orar com ousadia para que sua justiça se manifeste.
O lamento se torna mais pessoal: “Cheguem à tua presença os gemidos dos prisioneiros. Pela força do teu braço preserva os condenados à morte.” (v. 11). Segundo Calvino, o termo “condenados à morte” abrange todo o povo exilado, que vivia sem liberdade e sem esperança (CALVINO, 2009, p. 102).
O salmo então apresenta uma oração imprecatória: “Retribui sete vezes mais aos nossos vizinhos as afrontas com que te insultaram, Senhor!” (v. 12). O número sete, aqui, expressa plenitude. Hernandes observa que esse pedido não é movido por ódio, mas por zelo santo, para que a honra de Deus seja restaurada (LOPES, 2022, p. 860).
4. Um voto de louvor e fidelidade (v. 13)
Apesar de toda a dor, o salmo termina com esperança: “Então nós, o teu povo, as ovelhas das tuas pastagens, para sempre te louvaremos; de geração em geração cantaremos os teus louvores.” (v. 13). O povo reafirma sua identidade: ainda são ovelhas do pastoreio de Deus. A disciplina não os removeu da aliança.
Essa promessa lembra o propósito original do povo de Israel, como está em Isaías 43:21: “Este povo que formei para mim mesmo anunciará os meus louvores.” A fé de Asafe é recompensada. Após o exílio, descendentes dos levitas e dos filhos de Asafe retornam e participam da restauração (Ed 2:41; Ne 12:35).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 79 não contenha profecias diretas sobre o Messias, ele antecipa temas que se cumprem plenamente em Jesus. O clamor por perdão baseado no nome de Deus (v. 9) encontra resposta em Atos 4:12, onde Pedro afirma que “não há outro nome dado entre os homens pelo qual devamos ser salvos”.
Além disso, a zombaria dos inimigos – “Onde está o Deus deles?” – reaparece no escárnio que Jesus sofreu na cruz (Mateus 27:43). A dor de Israel antecipava o sofrimento do Justo por excelência.
A imagem das ovelhas do seu pastoreio (v. 13) se cumpre em João 10:11, onde Jesus se apresenta como o bom pastor que dá a vida pelas suas ovelhas. A restauração definitiva vem por meio dele.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 79
- Herança de Deus – Representa a terra prometida e o povo da aliança (v. 1). Sua profanação simboliza a quebra da aliança.
- Santo templo – Símbolo da presença divina. Sua destruição indicava ausência do favor de Deus (v. 1).
- Cadáveres insepultos – Representam maldição e vergonha. Mostram o desprezo completo dos inimigos (v. 2).
- Derramar o sangue como água – Indica banalização da vida e juízo sem misericórdia (v. 3).
- Sete vezes mais – Simboliza justiça plena e divina (v. 12).
- Ovelhas do teu pastoreio – Expressa cuidado, proteção e pertencimento (v. 13).
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 79
- Deus disciplina seu povo, mas não rompe sua aliança – Mesmo nas ruínas, ainda somos suas ovelhas (v. 13).
- Confessar os pecados abre espaço para misericórdia – O arrependimento coletivo é ouvido por Deus (v. 8–9).
- A honra de Deus está ligada ao testemunho do seu povo – Quando Israel cai, as nações zombam do Senhor (v. 10).
- Deus ouve os gemidos dos cativos – Nenhum clamor sincero passa despercebido (v. 11).
- A restauração deve gerar adoração contínua – Ser libertos não é o fim, mas o recomeço da missão (v. 13).
- Cristo é o cumprimento da esperança do Salmo 79 – Em Jesus, temos perdão, justiça e redenção (At 4:12).
Conclusão
O Salmo 79 é um retrato doloroso do juízo divino, mas também um testemunho da fidelidade de Deus. Mesmo quando tudo parece perdido, ainda há espaço para confissão, clamor e esperança. Ao ler este salmo, eu aprendo que, mesmo disciplinado, o povo de Deus continua sendo amado. A glória do nome do Senhor é a base da nossa redenção. E como ovelhas do seu pastoreio, nosso louvor deve ecoar por todas as gerações.
Referências
- CALVINO, João. Comentário dos Salmos. 1. ed. São José dos Campos: Fiel, 2009.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 703–704.