O Salmo 84 é atribuído aos filhos de Corá, uma família levítica que se destacou no ministério musical e na adoração do templo (ver 1 Crônicas 6:31–38). Essa atribuição tem um profundo significado histórico. Corá, o patriarca da família, liderou uma rebelião contra Moisés e foi punido severamente por Deus (Números 16). No entanto, seus descendentes foram poupados e, mais tarde, designados para o serviço no templo (Números 26:11). Isso revela a graça de Deus em preservar e restaurar gerações.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “alguns estudiosos atribuem esse salmo aos filhos de Corá, outros a Davi, em meio à fuga da perseguição de Absalão” (LOPES, 2022, p. 904). A menção aos “tabernáculos” e a referência ao desejo ardente de estar na casa do Senhor podem apontar para um tempo de exílio ou separação forçada do templo, o que reforça a possibilidade de que Davi seja o autor durante um período de afastamento de Jerusalém.
Do ponto de vista teológico, este salmo pertence ao grupo dos cânticos de peregrinação. Ele expressa o profundo anseio dos fiéis pelo templo em Sião, considerado a morada da presença de Deus. No Antigo Oriente Próximo, os templos eram vistos como o centro da habitação divina. John H. Walton observa que “no mundo antigo, morar continuamente diante da divindade era uma honra rara, desejada até mesmo por reis” (WALTON et al., 2018, p. 706).
Este salmo, portanto, une teologia, espiritualidade e emoção. Ele não apenas valoriza a estrutura do templo, mas revela a alma do adorador que ama o Deus que ali habita.
1. O desejo profundo pela presença de Deus (Sl 84:1–4)
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“Como é agradável o lugar da tua habitação, Senhor dos Exércitos!” (v. 1)
O salmista começa declarando sua afeição profunda pela casa de Deus. Ele não está apenas interessado no lugar físico, mas na presença de Deus que ali se manifesta. O verbo “anela” no verso 2 expressa saudade intensa, semelhante ao sentimento de alguém que deseja reencontrar um ente querido. “Minha alma anela, e até desfalece…” mostra que o corpo e a alma estão envolvidos nesse anseio.
Calvino destaca que “a mente de Davi estava longe de qualquer formalismo; seu desejo era culto sincero, não mera cerimônia” (CALVINO, 2009, p. 340). Ele não desejava a pompa dos rituais, mas a comunhão viva com o Deus que se revelava no santuário.
O versículo 3 traz uma imagem poética e terna: “Até o pardal achou um lar…”. O salmista observa a liberdade das aves que fazem ninho perto do altar e, com isso, expressa sua dor de não poder estar ali. Ao ler essa parte, eu me identifico com essa sensação de perda. Já me senti longe da presença de Deus em alguns momentos, e a ausência é sufocante. A felicidade, segundo ele, está em habitar na casa do Senhor e louvar continuamente (v. 4). Não se trata de um evento pontual, mas de uma vida centrada na adoração.
2. A força dos que caminham para Sião (Sl 84:5–7)
“Como são felizes os que em ti encontram sua força, e os que são peregrinos de coração!” (v. 5)
Aqui o salmo fala da peregrinação até o templo. Era comum que famílias de Israel subissem a Jerusalém durante as festas, como a Festa dos Tabernáculos (ver Deuteronômio 16:16). No caminho, eles enfrentavam cansaço, terrenos difíceis e até perigos, mas havia alegria na jornada.
O “vale de Baca” mencionado no versículo 6 é uma imagem enigmática. A palavra baca pode se referir ao “choro” ou a uma árvore chamada bálsamo. Segundo Walton, “essa expressão pode simbolizar dificuldades espirituais e emocionais enfrentadas pelos peregrinos” (WALTON et al., 2018, p. 706). A fé transforma lugares secos em mananciais. A força não vem da ausência de dificuldades, mas da presença de Deus na jornada.
Eu aprendo aqui que a caminhada espiritual é marcada por desafios, mas quando nossa força vem de Deus, mesmo os vales se tornam fontes de bênção. Como cristão, já atravessei momentos de dor profunda, mas, como o salmista, posso afirmar: fui de força em força até aparecer diante de Deus (v. 7).
3. A súplica do adorador (Sl 84:8–9)
“Ouve a minha oração, ó Senhor Deus dos Exércitos; escuta-me, ó Deus de Jacó.” (v. 8)
Depois de descrever a caminhada, o salmista levanta uma oração. Ele clama ao Deus dos Exércitos, reconhecendo seu poder, mas também o chama de Deus de Jacó, apontando para a aliança. Calvino observa que “essa petição demonstra que Davi sabia que só através da intervenção de Deus poderia ser restaurado” (CALVINO, 2009, p. 341).
O versículo 9 traz o pedido para que Deus “trate com bondade o teu ungido”, que pode se referir ao rei de Israel. Se for Davi o autor, ele roga por misericórdia e restauração do favor divino, apontando para a centralidade da aliança e da unção.
4. A escolha do adorador: estar com Deus é melhor (Sl 84:10–12)
“Melhor é um dia nos teus átrios do que mil noutro lugar…” (v. 10)
Esse versículo é um dos mais conhecidos do saltério. O salmista faz uma comparação entre a presença de Deus e qualquer outro lugar do mundo. Ele prefere ser porteiro do templo a habitar nas tendas dos ímpios. Essa imagem mostra humildade e discernimento. O “porteiro” era alguém com funções simples, mas permanecia perto da presença de Deus. Já as “tendas da perversidade” representam riqueza, poder e prazer longe do Senhor.
Ao ler isso, eu me questiono: onde prefiro estar? Muitas vezes somos seduzidos por posições de honra e conforto, mas o salmista nos lembra que estar com Deus — mesmo na posição mais humilde — é infinitamente melhor.
O versículo 11 destaca que Deus é “sol e escudo”. Essa combinação é poderosa: Ele é fonte de luz e vida (sol) e também proteção (escudo). Walton observa que “os reis assírios usavam a metáfora do sol para indicar sua proteção e bênção” (WALTON et al., 2018, p. 706). Aqui, o salmista aplica essa ideia ao verdadeiro Rei: Deus.
Ele dá graça (favor imerecido) e glória (honra e presença futura). Como cristão, aprendo que Deus não apenas nos sustenta no presente, mas também nos conduz à glória eterna. Ele não recusa nenhum bem aos que vivem com integridade (v. 11).
O salmo se encerra com a afirmação: “como é feliz aquele que em ti confia!” (v. 12). A verdadeira felicidade não está na abundância material, mas na confiança em Deus. Como Calvino afirma, “mesmo em meio a calamidades, somos felizes se a fé e a paciência estiverem em exercício” (CALVINO, 2009, p. 341).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 84 não contenha uma profecia messiânica explícita, ele aponta para Cristo de diversas formas. A “caminhada até Sião” antecipa a jornada espiritual do povo de Deus rumo à Nova Jerusalém, conforme descrito em Apocalipse 21.
Jesus é o verdadeiro Templo (João 2:21), a habitação definitiva de Deus entre os homens. Ele também é o “ungido” pelo qual o salmista ora (v. 9), cumprindo a função de Rei e Sacerdote.
O “vale de Baca” encontra sentido pleno na cruz. Cristo atravessou o vale mais profundo — a morte — para abrir um caminho até a presença de Deus (Hebreus 10:19–22). A promessa de “graça e glória” se cumpre em Cristo, que nos dá graça agora e glória futura (Romanos 8:30).
Significado dos nomes e simbolismos
- Senhor dos Exércitos – Expressa a soberania de Deus sobre todas as forças celestiais e terrestres.
- Vale de Baca – Simboliza sofrimento, dor, choro e dificuldade. Também aponta para transformação pela fé.
- Sol e escudo – Representam provisão (sol) e proteção (escudo). Deus ilumina e guarda seu povo.
- Ungido – Refere-se ao rei, mas aponta profeticamente para o Messias, o Cristo.
- Pardal e andorinha – Imagens da simplicidade e vulnerabilidade, encontrando refúgio junto ao altar.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 84
- A presença de Deus é mais desejável que qualquer privilégio terreno – Não há comparação entre os prazeres do mundo e a comunhão com Deus.
- Mesmo em meio a vales áridos, a fé nos conduz a fontes de refrigério – A caminhada cristã é cheia de desafios, mas Deus transforma lágrimas em fontes.
- A adoração deve envolver todo o nosso ser: alma, coração e corpo – Deus deseja adoradores que o busquem com sinceridade e intensidade.
- Nossa força espiritual não vem de dentro, mas do alto – É Deus quem nos sustenta e nos leva até Sião.
- A vida cristã é uma peregrinação que culmina em Deus – O objetivo final não é um lugar, mas uma Pessoa: o próprio Deus.
- A confiança em Deus é a base da verdadeira felicidade – Quem deposita sua esperança no Senhor não será frustrado.
Conclusão
O Salmo 84 é um dos mais belos cânticos da alma que anseia por Deus. Ele descreve com ternura, fé e coragem o caminho da adoração, mesmo em meio à dor. Ao ler este salmo, eu sou lembrado de que a presença de Deus é meu lar verdadeiro. Mesmo quando os vales surgem, minha força vem do Senhor. E, por fim, sei que a jornada termina diante dEle, em glória.
Que este salmo reavive em nós o desejo pela comunhão com Deus, pela adoração sincera e pelo céu, onde finalmente estaremos para sempre diante do nosso Rei.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 340–341.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 903–916.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 706.