O Salmo 86 é atribuído a Davi, sendo o único salmo com essa autoria presente no terceiro livro do Saltério (Salmos 73–89). Ele é classificado como um salmo de súplica individual ou lamento, em que o salmista expressa sua dor e dependência de Deus em meio a uma situação angustiante. Apesar de o texto não revelar o contexto exato da aflição, a tradição e o tom do salmo sugerem um momento de intensa perseguição e desespero.
Alguns estudiosos, como João Calvino, relacionam este salmo ao período em que Davi foi perseguido por Saul, antes de se tornar rei (CALVINO, 2009, p. 356). No entanto, o salmo pode ter sido escrito posteriormente, quando Davi já estava em paz, como uma oração que rememorava suas experiências passadas.
O texto é fortemente moldado pela linguagem e teologia do Pentateuco, com ecos constantes de Êxodo 34:6, onde Deus se revela como “compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e fidelidade”. Como observa Hernandes Dias Lopes, cada versículo do salmo remete a trechos anteriores do Antigo Testamento, como se Davi estivesse orando com a própria Escritura (LOPES, 2022, p. 927).
Além disso, Davi usa três nomes divinos de forma significativa: Yahweh (SENHOR), Adonai (Senhor, soberano) e Elohim (Deus criador e sustentador). Essa diversidade aponta para a profundidade da relação do salmista com Deus e para a riqueza da teologia da aliança que permeia o salmo.
1. O suplicante aflito e perseverante (Salmo 86:1–7)
>>> Inscreva-se em nosso Canal no YouTube
“Inclina os teus ouvidos, ó Senhor, e responde-me, pois sou pobre e necessitado.” (v. 1)
Davi começa com uma declaração de sua miséria. Não apela aos seus méritos ou realizações, mas à compaixão divina. Ele se descreve como pobre e necessitado, expressando total dependência do Senhor. Spurgeon dizia que “a miséria sempre é o argumento principal para com a misericórdia” (LOPES, 2022, p. 928).
No versículo 2, ele reforça que é fiel e confia no Senhor. Essa não é uma presunção orgulhosa, mas uma confissão de aliança. Como filho da promessa, Davi sabia que podia clamar ao Deus que o chamou. Como Calvino comenta, “não é por mérito que Davi roga ajuda, mas porque sabe que Deus socorre os oprimidos” (CALVINO, 2009, p. 356).
Ele insiste na oração contínua (v. 3), elevando sua alma ao Senhor (v. 4), pois sua alegria dependia da presença divina. Ao dizer “pois tu és bondoso e perdoador” (v. 5), Davi ancora sua esperança no caráter imutável de Deus. Ele confessa que a resposta de Deus não vem por causa de quem ora, mas por causa de quem ouve a oração.
Nos versículos 6 e 7, Davi reafirma sua confiança. No dia da angústia, ele clama com a certeza de que será ouvido. Ao ler esse trecho, eu me lembro de quantas vezes também orei sem saber o que esperar, mas encontrei consolo ao confiar que Deus ouve mesmo os gemidos mais silenciosos.
2. O Deus incomparável e acessível (Salmo 86:8–13)
“Nenhum dos deuses é comparável a ti, Senhor, nenhum deles pode fazer o que tu fazes.” (v. 8)
Neste trecho, Davi contrasta o Senhor com os falsos deuses das nações. Só o Deus de Israel é capaz de operar maravilhas e transformar a história. Segundo Calvino, “os ídolos não mostram nenhuma evidência de divindade, pois nada operam” (CALVINO, 2009, p. 363). O salmista rejeita qualquer forma de sincretismo ou superstição.
No versículo 9, ele declara que todas as nações adorarão o Senhor. Essa é uma afirmação poderosa e escatológica, antecipando o dia em que os povos se renderão ao verdadeiro Deus. O texto encontra eco em Apocalipse 15:4, onde se declara que “todas as nações virão e adorarão diante de ti”.
Davi prossegue, afirmando que Deus realiza feitos maravilhosos (v. 10), e por isso pede que o Senhor lhe ensine o caminho (v. 11). Seu desejo não é apenas livramento, mas transformação. Ele quer um coração unificado, livre das distrações, plenamente voltado para temer e obedecer ao nome de Deus. Como Calvino interpreta, “o coração do homem está cheio de tumulto e se dispersa em mil fragmentos até que Deus o ajunte para si” (CALVINO, 2009, p. 366).
Nos versículos 12 e 13, Davi transborda em gratidão. Ele louva de todo o coração, pois Deus o livrou das profundezas do Sheol. Como cristão, eu aprendo que a adoração verdadeira nasce da memória do livramento. Quando me lembro do que Deus fez por mim, não consigo ficar em silêncio.
3. Os arrogantes e o consolo divino (Salmo 86:14–17)
“Os arrogantes estão me atacando, ó Deus; um bando de homens cruéis […]” (v. 14)
Davi volta a mencionar seus inimigos. Ele os descreve como soberbos e cruéis, sem temor de Deus. São homens que agem com violência e arrogância. No entanto, Davi não revida. Ele apela à misericórdia do Senhor. Essa postura me desafia. Em vez de alimentar ressentimento, ele busca refúgio em Deus.
Nos versículos 15 e 16, ele cita diretamente Êxodo 34:6. Deus é compassivo, paciente, cheio de amor e fidelidade. Davi clama por força e salvação, reconhecendo sua fragilidade. Ele se apresenta como “filho da tua serva”, título que expressa submissão e aliança. Calvino explica que essa expressão revela que Davi era servo de nascimento, desde o ventre, e gloriava-se disso (CALVINO, 2009, p. 369).
Por fim, no versículo 17, Davi pede um sinal visível do favor de Deus. Ele deseja que seus inimigos vejam e sejam humilhados, ao testemunharem o consolo que vem do Senhor. Hernandes Dias Lopes observa que esse pedido revela que o livramento de Davi serviria tanto para sua própria confiança quanto para o juízo dos ímpios (LOPES, 2022, p. 932).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 86 não contenha profecias messiânicas explícitas, ele aponta para várias verdades que se cumprem plenamente em Cristo.
A universalidade da adoração (v. 9) se realiza em Jesus, quando ele envia seus discípulos a todas as nações (Mateus 28:19). Cristo é o Senhor perante quem todo joelho se dobrará (Filipenses 2:10).
O desejo por um coração indiviso (v. 11) encontra eco na nova aliança, onde Deus promete escrever sua lei nos corações dos fiéis (Jeremias 31:33).
E o livramento do Sheol (v. 13) aponta para a ressurreição. Cristo desceu ao Hades e ressuscitou em vitória, garantindo a vida eterna para os que confiam nele (1 Coríntios 15:54-57).
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 86
- Yahweh (SENHOR) – Nome pessoal de Deus, usado em contextos de aliança e intimidade.
- Adonai (Senhor) – Refere-se ao senhorio e domínio absoluto de Deus.
- Elohim (Deus) – Nome que enfatiza o poder criador e sustentador do Senhor.
- Sheol – Lugar dos mortos, símbolo da morte profunda e da separação, do qual só Deus pode nos livrar.
- Servo e filho da serva – Expressões que indicam submissão, lealdade e identidade com o povo da aliança.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 86
- A dor pode nos levar mais perto de Deus – Davi transforma sua aflição em oração. Ao invés de murmurar, ele clama.
- A oração deve se basear no caráter de Deus, não em nossos méritos – Ele ora com fé porque sabe que Deus é bondoso e perdoador.
- Buscar um coração indiviso é essencial para andar na verdade – A fidelidade começa no coração que teme ao Senhor.
- Não existe adoração verdadeira sem memória do livramento – Louvar é lembrar da graça, como também vimos em Salmo 103.
- Deus vê, ouve e age no tempo certo – O clamor sincero nunca é em vão.
- Mesmo diante de inimigos, podemos confiar no consolo do Senhor – Ele dá sinais do seu favor, visíveis até aos que zombam.
- O caminho de Deus precisa ser aprendido e seguido com humildade – A maturidade espiritual começa com a disposição de aprender.
Conclusão
O Salmo 86 nos conduz por uma jornada intensa de dor, fé e adoração. Nele, Davi nos mostra que até as orações mais aflitas podem se transformar em louvor sincero. Ele nos ensina que não há situação em que a bondade de Deus não possa nos alcançar. Quando tudo parece desabar, é possível encontrar consolo no caráter imutável do Senhor.
Ao ler este salmo, eu me sinto desafiado a confiar mais, orar com mais intensidade e adorar com mais verdade. Deus é bom, perdoador, compassivo e fiel. E Ele continua a ouvir a oração dos pobres e necessitados.
Referências
- CALVINO, João. Salmos. Organização de Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; tradução de Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 356–370.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus. Organização de Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 927–932.