O Salmo 98 faz parte do grupo conhecido como “Salmos Reais” (Salmos 93–100), cuja ênfase recai sobre a soberania de Deus como Rei de toda a terra. Seu autor não é identificado, e seu conteúdo não está vinculado a um evento histórico específico. No entanto, seu pano de fundo litúrgico é evidente: trata-se de um cântico de louvor, possivelmente entoado em festividades de ação de graças ou celebrações da aliança, como a Festa das Trombetas ou mesmo a entrada da Arca da Aliança em Jerusalém.
A estrutura do salmo sugere um crescendo de adoração: começa com o povo de Israel (vv. 1–3), avança para as nações (vv. 4–6) e culmina com toda a criação (vv. 7–9). Segundo Hernandes Dias Lopes, “há um claro foco também na vinda final do Senhor, quando o Senhor Jesus regressar para congregar seu povo e julgar o mundo inteiro” (LOPES, 2022, p. 1053). Assim, o salmo oscila entre passado, presente e futuro, exaltando os feitos redentores de Deus, sua soberania atual e seu juízo vindouro.
O cenário do Antigo Oriente Próximo também ilumina a linguagem do texto. Expressões como “braço santo” remetem às representações egípcias do poder real e são ressignificadas aqui como sinais do domínio exclusivo de Deus sobre os povos (WALTON et al., 2018, p. 710).
Como Calvino observa: “Deus não salvaria o mundo por meios de um caráter ordinário, mas que se manifestaria e demonstraria que ele era o autor de uma salvação em todos os aspectos extremamente singular” (CALVINO, 2009, p. 558). Essa salvação é tanto um ato histórico quanto uma antecipação profética do que Deus faria em Cristo.
1. A vitória do Senhor e a fidelidade à aliança (Sl 98:1–3)
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“Cantem ao Senhor um novo cântico, pois ele fez coisas maravilhosas; a sua mão direita e o seu braço santo lhe deram a vitória!” (v. 1)
O salmo começa com um convite ao louvor. A razão? Deus tem feito maravilhas. A linguagem é intensamente teológica: “braço santo” e “mão direita” são imagens da intervenção direta de Deus na história, como no Êxodo, quando Ele libertou Israel do Egito. Segundo Walton, essas expressões eram comuns em hinos egípcios que exaltavam o poder do faraó, mas no salmo elas afirmam que o poder de Deus ultrapassa qualquer soberano humano (WALTON et al., 2018, p. 710).
Ao ler este versículo, eu reconheço que a nossa salvação não é fruto de esforço humano, mas resultado de um ato divino, surpreendente e gracioso. O “novo cântico” não é apenas uma nova melodia, mas uma resposta renovada a uma ação inédita de Deus. O mesmo conceito aparece em Salmo 96, outro salmo com forte ênfase universal.
O versículo 2 afirma: “O Senhor anunciou a sua vitória e revelou a sua justiça às nações.” Deus não age em segredo. Sua salvação é visível, pública e intencionalmente exposta às nações. Calvino afirma que “a justiça de Deus, que é a fonte da salvação, não consiste em recompensar os homens segundo suas obras, mas que é simplesmente a ilustração de sua mercê, graça e fidelidade” (CALVINO, 2009, p. 558).
Por fim, o verso 3 declara que Deus se lembrou do seu amor leal e da sua fidelidade com Israel. A aliança com Abraão é lembrada, não por méritos do povo, mas porque Deus é fiel à sua promessa. A expressão “todos os confins da terra” aponta para a universalidade do plano divino, antecipando a grande comissão e a expansão do evangelho.
2. Aclamem o Rei com alegria (Sl 98:4–6)
“Aclamem o Senhor todos os habitantes da terra! Louvem-no com cânticos de alegria e ao som de música!” (v. 4)
A segunda parte do salmo amplia o chamado ao louvor. Agora, não é apenas Israel, mas todas as nações. A adoração é coletiva e sonora, acompanhada de instrumentos musicais. O uso de harpa, cornetas e trombetas evoca solenidade, festa e reverência. Hernandes afirma: “O melhor som deve ser a Ele endereçado, e a melhor homenagem deve ser a Ele prestada” (LOPES, 2022, p. 1055).
Ao ler esse trecho, eu sou lembrado de que a adoração cristã não é monótona ou isolada. Ela é vibrante, pública e transbordante de gratidão. A musicalidade aqui não é uma mera estética litúrgica; é o reflexo de um coração cheio da presença do Rei.
Calvino observa que “a repetição é enfática e implica que as mais ardentes tentativas que os homens fizessem em celebrar a grande obra da redenção do mundo esmaeceriam diante das riquezas da graça divina” (CALVINO, 2009, p. 561).
3. A criação em júbilo pela vinda do Senhor (Sl 98:7–9)
“Ressoe o mar e tudo o que nele existe, o mundo e os seus habitantes!” (v. 7)
A última parte do salmo introduz um elemento poético e escatológico. A natureza é convocada a louvar. O mar ruge, os rios batem palmas, os montes cantam. Segundo Walton, ao contrário dos povos vizinhos que viam a natureza como deuses, os hebreus personificavam a criação como serva de Deus, sem lhe atribuir divindade (WALTON et al., 2018, p. 711).
Esse trecho me impressiona. Ao olhar para o mar ou os montes, sou lembrado que tudo o que existe foi criado para glorificar ao Senhor. E um dia, toda a criação participará plenamente dessa celebração.
O verso 9 dá a razão: “porque ele vem, vem julgar a terra.” A primeira vinda de Cristo inaugurou esse juízo com graça e salvação, mas sua segunda vinda trará justiça definitiva. Como afirma Calvino: “o povo deliberadamente renunciou de vez todo seu estado de felicidade”, mas o juízo de Deus restaura o equilíbrio da criação (CALVINO, 2009, p. 562).
Cumprimento das profecias
O Salmo 98 encontra seu cumprimento pleno em Jesus Cristo. A “salvação revelada às nações” se manifesta na cruz e na ressurreição, como também aponta o apóstolo Paulo em Romanos 1:16: “o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”.
A expectativa do juízo também é messiânica. O Novo Testamento retoma esse tema de forma clara. Em Apocalipse 19:11–16, vemos o Cordeiro retornando como Rei e Juiz. Esse é o mesmo Senhor do Salmo 98.
Quando o salmo declara que “todos os confins da terra viram a vitória do nosso Deus”, podemos entender que essa profecia se cumpre em passagens como Mateus 24:14, onde Jesus afirma que o evangelho será pregado em todo o mundo antes do fim.
Significado dos nomes e simbolismos
- “Braço santo” – símbolo do poder divino em ação redentora. Contrasta com o “braço forte” dos reis humanos (WALTON et al., 2018, p. 710).
- “Novo cântico” – louvor renovado diante de uma nova manifestação da graça de Deus.
- “Confins da terra” – expressão da universalidade do plano de salvação.
- “Trombeta e corneta” – instrumentos usados para convocar, celebrar e alertar. Estão ligados à realeza e ao culto.
- “Rios batendo palmas” e “montes cantando” – personificação poética da natureza, que reconhece o senhorio do Criador.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 98
- A salvação é dom de Deus, não conquista humana – O braço forte do Senhor é quem realiza maravilhas. Eu não posso salvar a mim mesmo.
- A fidelidade de Deus sustenta sua aliança – Mesmo quando falhamos, Ele permanece fiel ao seu plano de redenção.
- A adoração envolve toda a criação – Louvar a Deus não é um ato isolado, mas cósmico. Céus, mares e montanhas fazem parte desse louvor.
- Cristo é o centro da celebração – Ele é o Rei vitorioso e o Juiz que vem. Toda a terra será confrontada com sua justiça.
- A adoração deve ser viva, alegre e completa – Instrumentos, vozes e ações devem exaltar a grandeza do Senhor com integridade.
- A missão é universal – O evangelho é para todos os povos. Deus deseja que todos vejam a sua salvação.
- A natureza nos ensina a adorar – Ela aponta para o Criador com reverência e alegria. Eu também fui criado para isso.
Conclusão
O Salmo 98 é um convite global e cósmico à adoração. Ele começa com Israel, se estende às nações e culmina na criação inteira. O motivo é claro: Deus salvou com seu braço santo, revelou sua justiça e virá julgar com equidade. Como cristão, eu sou chamado a unir minha voz à desse coro universal — não apenas com cânticos, mas com vida.
Ao olhar para a cruz e para a esperança da segunda vinda, eu me uno aos confins da terra, aos rios e montanhas, proclamando: “O Senhor reina!” (Salmo 96:10).
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 558–562.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1053–1058.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 710–711.