Gênesis 23 é um capítulo profundamente humano e teológico. Ele narra a morte de Sara e o primeiro pedaço de terra adquirido por Abraão em Canaã, a Terra Prometida. À primeira vista, pode parecer apenas um relato cultural sobre sepultamento, mas, ao ler esse texto, percebo o quanto ele revela sobre fé, perseverança e o cumprimento das promessas de Deus, mesmo em situações difíceis como a morte.
Qual é o contexto histórico e teológico de Gênesis 23?
Gênesis 23 faz parte do ciclo de narrativas sobre Abraão, escritas por Moisés, provavelmente no período do Êxodo, entre os séculos XV e XIII a.C. O capítulo se passa em Canaã, a terra prometida por Deus a Abraão e seus descendentes, mas que, naquele momento, ainda estava habitada por outros povos, como os hititas.
É importante lembrar que, no antigo Oriente Próximo, a posse de terra estava profundamente ligada à identidade e ao futuro de uma família. Como explicam Walton, Matthews e Chavalas (2018), os costumes daquela época não favoreciam que estrangeiros adquirissem propriedades, especialmente terras de sepultura, que tinham valor simbólico e familiar duradouro.
Os hititas mencionados aqui não são os mesmos do império hitita da Anatólia, mas um grupo cananeu ou colonos assimilados à cultura local (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018). Seus nomes são semitas e o diálogo entre eles e Abraão ocorre de forma natural, sem necessidade de intérpretes, o que mostra certa convivência e integração cultural.
O texto destaca a figura de Abraão como um “estrangeiro e peregrino”, expressão carregada de significado espiritual. Como afirmam Waltke e Fredericks (2010), isso representa não apenas a realidade social de Abraão, mas também o modelo de todos os crentes, que vivem nesta terra como forasteiros, à espera da pátria celestial, como lemos em Hebreus 11.13-16.
Teologicamente, Gênesis 23 revela a maturidade da fé de Abraão. Após décadas seguindo as promessas de Deus, mesmo diante da morte de sua esposa, ele age com prudência, honra e visão de futuro, assegurando um pedaço da Terra Prometida para sua família.
Como o texto de Gênesis 23 se desenvolve? (Gênesis 23.1-20)
O capítulo se organiza em três momentos principais: a morte de Sara, as negociações de Abraão com os hititas e a aquisição formal da caverna de Macpela.
Morte e lamento por Sara (Gênesis 23.1-2)
O texto começa dizendo:
“Sara viveu cento e vinte e sete anos e morreu em Quiriate-Arba, que é Hebrom, em Canaã; e Abraão foi lamentar e chorar por ela” (Gênesis 23.1-2).
Sara é a única mulher na Bíblia cuja idade ao morrer é registrada, o que demonstra sua importância (WALTKE; FREDERICKS, 2010). Ela viveu 127 anos e faleceu em Hebrom, uma cidade significativa, associada às promessas divinas.
O lamento de Abraão é breve, mas sincero. Os detalhes sobre o sepultamento, entretanto, recebem muito mais atenção no texto, mostrando que o foco do narrador não é apenas a perda pessoal, mas a concretização das promessas de Deus (WALTKE; FREDERICKS, 2010).
Primeiro ciclo de negociações: o pedido de um sepulcro (Gênesis 23.3-6)
Após o luto inicial, Abraão se dirige aos hititas e diz:
“Sou apenas um estrangeiro entre vocês. Cedam-me alguma propriedade para sepultura, para que eu tenha onde enterrar a minha mulher” (Gênesis 23.4).
Essa declaração carrega humildade e fé. Abraão reconhece sua condição de forasteiro, mas também expressa o desejo de se enraizar na terra que Deus lhe prometeu.
Os hititas respondem com respeito:
“Ouça-nos, senhor; o senhor é um príncipe de Deus em nosso meio” (Gênesis 23.6).
Eles reconhecem a bênção de Deus sobre Abraão, mesmo sem professarem a mesma fé. Isso revela o testemunho que Abraão construíra ao longo dos anos.
Os hititas oferecem seus túmulos, mas, como explica Waltke (2010), permitir o enterro em túmulos alheios não era o mesmo que possuir um pedaço de terra. Abraão busca mais do que um favor momentâneo; ele quer uma posse legal e perpétua.
Segundo ciclo de negociações: a oferta da caverna de Macpela (Gênesis 23.7-11)
Abraão se curva novamente, demonstrando respeito, e pede que intercedam por ele junto a Efrom, proprietário da caverna de Macpela. O local é estratégico: uma caverna, provavelmente com várias câmaras, adequada para sepultamentos familiares por gerações (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018).
Efrom, então, responde diretamente, oferecendo não só a caverna, mas o campo inteiro. Essa prática de incluir mais do que o solicitado é típica das negociações do Oriente Próximo, com linguagem polida e indireta (WALTKE; FREDERICKS, 2010).
Por trás da cortesia, havia uma estratégia: ao vender o campo inteiro, o preço poderia ser elevado, e o vínculo legal seria incontestável.
Terceiro ciclo de negociações: o preço e a formalização da compra (Gênesis 23.12-16)
Abraão insiste em pagar o preço justo, pois entende que uma posse legítima e perpétua só seria possível mediante uma compra formal. Efrom estabelece o valor: “quatrocentas peças de prata” (Gênesis 23.15).
Como apontam Walton, Matthews e Chavalas (2018), esse preço era elevado, talvez exorbitante. Mas Abraão não hesita. Ele pesa a prata conforme o costume comercial da época e conclui a transação.
Esse detalhe, aparentemente burocrático, é crucial. Em um mundo onde as promessas de Deus ainda não se concretizaram plenamente, Abraão age com sabedoria, fé e paciência, garantindo legalmente um pedaço da Terra Prometida.
Conclusão e sepultamento de Sara (Gênesis 23.17-20)
O narrador detalha a transferência legal da propriedade, incluindo o campo, a caverna e as árvores. Abraão enterra Sara na caverna de Macpela, inaugurando aquele local como o sepulcro da família patriarcal.
Esse pequeno pedaço de terra se tornaria um símbolo da esperança e da promessa divina. Ali também seriam sepultados Abraão, Isaque, Rebeca, Jacó e Lia (Gênesis 49.29-32).
Que conexões proféticas encontramos em Gênesis 23?
Ainda que Gênesis 23 não contenha profecias explícitas, o episódio aponta para verdades messiânicas e escatológicas presentes no restante das Escrituras.
Primeiro, Abraão representa todos os que vivem pela fé, aguardando o cumprimento das promessas de Deus, mesmo sem vê-las plenamente nesta vida. Hebreus 11.13-16 afirma:
“Todos estes viveram pela fé e morreram sem receber o que tinha sido prometido; viram-no de longe e de longe o saudaram, reconhecendo que eram estrangeiros e peregrinos na terra”.
Além disso, o sepultamento de Sara e a compra da caverna de Macpela prefiguram o descanso final do povo de Deus, não em uma terra terrena apenas, mas na pátria celestial, conforme a esperança revelada em Apocalipse 21.
Por fim, a perseverança de Abraão ao adquirir legalmente a terra simboliza a certeza de que Deus cumprirá Suas promessas. Assim como Abraão garantiu um pedaço de Canaã, Cristo garante a nós a entrada no Reino eterno, como lemos em João 14.1-3.
O que Gênesis 23 me ensina para a vida hoje?
Ao ler Gênesis 23, sou confrontado com o realismo da vida e da fé. A morte de Sara me lembra que, mesmo para os mais abençoados por Deus, o sofrimento e as perdas fazem parte da caminhada.
Mas Abraão não permitiu que o luto o paralisasse. Ele chorou, sim, mas também agiu com fé, visão e esperança. Isso me ensina a não desistir diante das perdas, mas a seguir confiando no que Deus prometeu.
O respeito de Abraão pelos costumes locais e sua insistência em fazer tudo de forma legal e justa me mostram que a fé não é desculpa para agir de forma leviana ou oportunista. Ser cristão é ter integridade, mesmo quando os outros oferecem “atalhos” ou favores duvidosos.
Também aprendo com Abraão a importância de planejar o futuro. Ele não comprou a caverna apenas para Sara, mas como um legado para seus descendentes. Como discípulo de Jesus, preciso ter essa visão de legado: o que estou construindo hoje para minha família e para a próxima geração?
Por fim, o capítulo me ensina que, assim como Abraão, sou apenas um peregrino neste mundo. Minha pátria definitiva não é aqui. Vivo com os olhos na promessa, aguardando a nova Jerusalém, onde não haverá mais morte, luto, choro ou dor (Apocalipse 21.4).
Como Gênesis 23 me conecta ao restante das Escrituras?
Gênesis 23 está intimamente ligado ao plano maior de Deus revelado em toda a Bíblia:
- A promessa da Terra a Abraão aponta para o Reino eterno de Deus (Hebreus 11).
- A figura do peregrino e forasteiro se aplica a todos os crentes (1 Pedro 2.11).
- A sepultura em Canaã prefigura a certeza do descanso final em Cristo.
- A integridade e fé de Abraão são modelo para nós, como afirma Paulo em Romanos 4.
Ao olhar para este capítulo, sou lembrado de que, mesmo em meio às perdas, posso agir com fé, construir um legado e viver com os olhos fixos na eternidade.
Referências
- WALTKE, Bruce K.; FREDRICKS, Cathi J. Gênesis. Organização: Cláudio Antônio Batista Marra. Tradução: Valter Graciano Martins. 1. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução: Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.
- Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2001.

Sou Diego Nascimento e o Jesus e a Bíblia não é apenas um projeto, é um chamado. Deus deu essa missão a mim e a Carol (esposa) por meio do Espírito Santo. Amamos a Palavra de Deus e acreditamos que ela pode mudar a sua vida, assim como mudou a nossa.