Levítico 11 é um capítulo que me confronta com algo que raramente associamos à espiritualidade: o que comemos. Nele, Deus estabelece uma lista detalhada de animais puros e impuros. À primeira vista, pode parecer apenas um código de dieta, mas ao estudar mais de perto, percebo que essas instruções estão profundamente ligadas ao chamado de Deus para sermos um povo santo. Aqui, comer é uma forma de adorar. O prato da mesa se torna um altar.
Qual é o contexto histórico e teológico de Levítico 11?
Levítico foi escrito por Moisés durante a jornada de Israel pelo deserto, aproximadamente um ano após o êxodo do Egito. O povo de Israel acabava de ser liberto da escravidão e precisava aprender a viver como uma nação santa, separada para Deus (VASHOLZ, 2018). Nesse cenário, Deus estabeleceu leis que impactariam todas as áreas da vida — inclusive a alimentação.
Pela primeira vez no livro, o Senhor fala diretamente a Moisés e Arão (Lv 11.1). Isso acontece logo após Arão ter sido ordenado sacerdote, mostrando sua responsabilidade diante de Deus em ensinar o povo a discernir entre o puro e o impuro (cf. Lv 10.10; Ez 22.26).
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Segundo Walton, Matthews e Chavalas, o sistema dietético de Israel não encontra paralelo completo em nenhuma outra cultura antiga. Apesar disso, os animais considerados puros geralmente batiam com os hábitos alimentares normais do Oriente Próximo. Ou seja, a seleção divina não era aleatória, mas também não se limitava à tradição regional — ela apontava para um padrão celestial (WALTON; MATTHEWS; CHAVALAS, 2018).
Levítico 11 é, portanto, um chamado à distinção. Deus separa o que é santo do que é comum, e ensina seu povo a viver de forma diferente dos vizinhos pagãos. Comer se torna uma confissão prática: “Pertencemos a Yahweh”.
Como o texto de Levítico 11 se desenvolve?
1. Que animais terrestres são considerados puros? (Levítico 11.2–8)
Deus determina que apenas os animais que “têm casco fendido e que ruminam” podem ser comidos (Lv 11.3). É o caso de bois, ovelhas, cabras e cervos — animais que representam estabilidade e utilidade para o ser humano. Eles também eram os mesmos aceitos como sacrifícios (cf. Gênesis 8.20).
Por outro lado, quatro animais são destacados como impuros por apresentarem apenas uma das duas características: camelo, coelho, lebre e porco (Lv 11.4–7). O porco, mesmo tendo casco fendido, não rumina. Como observam Walton e colegas, o porco era considerado impuro em várias culturas antigas por seu comportamento e uso em rituais de adoração aos mortos ou demônios. Ele simbolizava o que era inaceitável no culto a Yahweh.
Tocar na carcaça desses animais também tornava alguém impuro até à tarde (Lv 11.8). A morte, aqui, é vista como transmissora de impureza — um lembrete do juízo e da separação que o pecado causa.
2. E os animais aquáticos? (Levítico 11.9–12)
A regra é clara: só podem ser comidos os que têm barbatanas e escamas. Peixes como salmão e truta eram permitidos; criaturas como enguias, moluscos e crustáceos eram proibidas.
Vasholz aponta que peixes sem barbatanas tendem a viver no lodo, mais propensos à contaminação. Mas a razão fundamental, como o próprio texto afirma, não é a higiene, e sim a santidade: “considerem-nos impuros” (Lv 11.10).
3. Quais aves são impuras? (Levítico 11.13–19)
Aqui está uma das seções mais longas e difíceis de identificar com precisão. O texto lista vinte aves impuras, começando com a águia e terminando com o morcego.
Robert Vasholz explica que essas aves costumam ser carniceiras, bebedoras de sangue, noturnas ou habitantes de áreas desoladas — todas características que simbolizam julgamento, violência ou impureza (VASHOLZ, 2018).
Por exemplo, o corvo aparece como mensageiro de destruição em Isaías 34.11, e como símbolo da providência divina em 1 Reis 17.6, quando alimenta Elias no deserto. Mesmo com esses contrastes, ele é considerado impuro para consumo.
4. E os insetos e répteis? (Levítico 11.20–30)
Insetos com asas e quatro patas eram impuros, exceto os que saltavam: gafanhotos, grilos e locustas podiam ser comidos (Lv 11.22). João Batista, por exemplo, se alimentava de gafanhotos e mel silvestre (Mt 3.4).
Répteis, como camaleões, lagartos e ratos, eram impuros, e até objetos contaminados por suas carcaças deveriam ser destruídos ou lavados (Lv 11.29–35). Isso mostra que a impureza era transmissível, e exigia cuidado prático para preservar a santidade.
5. Qual é a motivação para essas leis? (Levítico 11.44–47)
O coração da lei aparece nos versículos finais: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês; consagrem-se e sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.44).
A santidade de Deus é o motivo e o modelo. Comer se torna uma expressão visível da separação de Israel para Deus. Até os hábitos mais rotineiros devem refletir a identidade do povo de Deus.
Como Levítico 11 aponta para Cristo?
No Novo Testamento, Jesus declara que “nada que vem de fora pode tornar alguém impuro, mas o que sai do coração” (Mc 7.18–20). Pedro tem uma visão que desafia os limites da lei dietética: “Não chame impuro ao que Deus purificou” (Atos 10.14). Ali, Deus usa a alimentação para ensinar sobre a inclusão dos gentios no plano da salvação.
A pureza, agora, não é definida pelo que comemos, mas por quem somos em Cristo. Paulo escreve: “Todas as coisas são limpas para os puros” (Tt 1.15). Isso não elimina a distinção entre o santo e o profano, mas a eleva a um novo nível: a santidade é interior, fruto do Espírito.
Jesus é o verdadeiro “alimento limpo” que nos santifica. Ele disse: “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue permanece em mim, e eu nele” (João 6.56). Ele é o Cordeiro sem mancha, o sacrifício aceito, o alimento da nova aliança.
O que Levítico 11 me ensina para a vida hoje?
Ao ler Levítico 11, sou confrontado com um princípio claro: a santidade começa nos detalhes. O modo como como, falo, escolho e vivo — tudo deve refletir minha separação para Deus.
Essas leis me lembram que Deus se importa com as pequenas coisas. Nada em minha vida é neutro. Cada escolha comunica algo sobre quem eu pertenço.
Também aprendo que a impureza contamina. Assim como objetos e pessoas se tornavam impuros ao tocar carcaças, eu também posso me contaminar ao conviver com aquilo que Deus considera ofensivo. A vigilância espiritual é necessária.
Além disso, entendo que santidade é um chamado de identidade. Deus não quer apenas comportamentos corretos, mas um povo que O represente. “Sejam santos, porque eu sou santo” não é um fardo, mas um convite. Santidade é parecida com Deus.
Finalmente, esse capítulo me ensina a distinguir. Em um mundo onde tudo é relativo, Levítico 11 me chama a dizer: “isso é puro, isso é impuro”. Em Cristo, tenho liberdade, mas também responsabilidade. Sou chamado a viver com discernimento, não me conformando com os padrões do mundo (Rm 12.2).
Referências
- VASHOLZ, Robert I. Levítico. Tradução: Jonathan Hack. 1. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento. Tradução: Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018.
- Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2001.