O Salmo 104 é um hino majestoso que celebra a grandeza de Deus por meio da criação. Não é atribuído diretamente a um autor, mas a Septuaginta e boa parte da tradição o atribuem a Davi, e não há razões para contestar isso.
Ele está intimamente ligado ao Salmo 103, formando uma dupla que trata das duas grandes ações de Deus: redenção (Salmo 103) e criação (Salmo 104). Hernandes Dias Lopes afirma que “assim como o Salmo 103 e Apocalipse 5 falam da redenção, o Salmo 104 e Apocalipse 4 falam da criação” (LOPES, 2022, p. 1113).
Este salmo é um testemunho poético da cosmovisão bíblica: o mundo não é fruto do acaso, mas da ação consciente, ordenada e sábia do Criador. A linguagem é rica, cheia de metáforas e imagens vívidas, e muitos estudiosos observam paralelos literários e temáticos entre esse salmo e o Hino a Áton, do Egito Antigo. Ainda assim, o Salmo 104 não é sincretista, pois todo o louvor é direcionado exclusivamente a Yahweh. Como observam Walton, Matthews e Chavalas, “não há nada de sincretista nas crenças expressas neste salmo” (WALTON et al., 2018, p. 712).
Teologicamente, o Salmo 104 reforça a doutrina da providência de Deus: Ele não apenas criou o mundo, mas continua sustentando todas as coisas com sabedoria e cuidado diário. Este é um ponto chave no Antigo Testamento e que ecoa fortemente no Novo, especialmente nas palavras de Paulo em Colossenses 1:16–17, onde Cristo é descrito como aquele por quem e para quem todas as coisas foram criadas, e em quem tudo subsiste.
1. Deus se revela como Rei glorioso da criação (Sl 104:1–4)
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O salmo começa com uma convocação pessoal: “Bendiga ao Senhor a minha alma!” (v. 1). Eu gosto de ver esse início como um chamado interno à adoração consciente. O salmista começa louvando a Deus por sua majestade: “Estás vestido de majestade e esplendor, envolto de luz como numa veste” (v. 1–2). A imagem da luz como roupa reflete uma glória inacessível e visível ao mesmo tempo. Calvino comenta que “embora Deus seja invisível, sua glória é suficientemente proeminente” (CALVINO, 2009, p. 637).
A descrição continua com Deus estendendo os céus como uma cortina (v. 2) e colocando os vigamentos de sua morada sobre as águas (v. 3). Isso remete à visão do cosmos como um templo, um palácio celestial em que Deus reina. Segundo Walton, “o cosmo pode ser descrito em termos arquitetônicos como se faria na descrição de um templo” (WALTON et al., 2018, p. 712).
As nuvens se tornam sua carruagem e o vento, suas asas (v. 3). Essa linguagem é comum também nos textos ugaríticos sobre Baal, o “cavaleiro das nuvens”, mas aqui ela é aplicada ao único Deus verdadeiro (WALTON et al., 2018, p. 712). O vento e o fogo (v. 4) são apresentados como seus mensageiros, o que o autor de Hebreus interpreta como referência aos anjos (Hebreus 1:7).
2. Deus estabelece ordem sobre o caos (Sl 104:5–9)
A criação, conforme descrita nesta seção, começa com o firmamento da terra (v. 5) e o controle das águas caóticas (v. 6–9). O salmista lembra que Deus cobriu a terra com o abismo, mas à sua ordem as águas recuaram. A linguagem aqui ecoa a narrativa da criação em Gênesis 1, mas também se relaciona com mitologias do antigo Oriente Próximo, como o Enuma Elish, onde Marduque vence Tiamat.
Contudo, como enfatiza Calvino, “a aparência de qualquer parte da superfície da terra não é o efeito da natureza, mas é um evidente milagre” (CALVINO, 2009, p. 642). O limite imposto por Deus ao mar (v. 9) é um sinal de que o caos não reina. Deus continua sustentando a ordem.
3. A providência de Deus na criação (Sl 104:10–18)
Nesta seção, o salmista descreve Deus como Aquele que sustenta a vida. As fontes de água saciam os animais (v. 10–11), as aves encontram abrigo (v. 12), e os montes são regados do alto (v. 13). Tudo é descrito como ação contínua de Deus.
Eu me impressiono ao ver como o texto não separa o espiritual do físico. Deus está tão presente na ordem das chuvas quanto no templo. Ele faz crescer o pasto (v. 14), provê o vinho, o azeite e o pão (v. 15), elementos que refletem o cuidado generoso e a celebração da vida. Hernandes Dias Lopes observa que “Deus dá não apenas o básico, mas até mesmo o supérfluo” (LOPES, 2022, p. 1118).
As árvores, as aves e os animais dos montes (v. 16–18) também têm seu lugar assegurado. Nada escapa ao cuidado do Criador.
4. O tempo e o trabalho na criação (Sl 104:19–23)
Deus não apenas cria, mas governa o tempo: “Ele fez a lua para marcar estações; o sol sabe quando deve se pôr” (v. 19). A alternância entre dia e noite serve a propósitos distintos: à noite, os animais saem em busca de alimento (v. 20–21); de dia, o homem trabalha (v. 22–23).
Esse arranjo nos mostra que Deus estabeleceu um ritmo harmônico entre a criação. O que parece natural é, na verdade, um reflexo do cuidado de Deus. Como diz Calvino, “o mundo não originou a si próprio; toda a ordem da natureza depende da designação divina” (CALVINO, 2009, p. 641).
5. A criação do mar e a soberania de Deus (Sl 104:24–26)
Agora o salmo se volta ao mar, um lugar vasto, temido e misterioso: “Eis o mar, imenso e vasto” (v. 25). Nele, criaturas incontáveis habitam, desde os pequenos até o Leviatã (v. 26), um monstro simbólico, associado ao caos. Aqui, porém, ele não ameaça: “formaste para com ele brincar”. Isso mostra que até mesmo aquilo que nos assusta está sob o controle de Deus.
Walton explica que “a derrota das forças do caos era um dos elementos mais comuns da cosmologia do antigo Oriente Próximo” (WALTON et al., 2018, p. 713). Aqui, o salmista afirma que o Leviatã é apenas uma criatura de Deus. Ele brinca no mar, como se Deus zombasse do poder do caos.
6. A dependência absoluta da criação (Sl 104:27–30)
“Todos eles esperam em ti…” (v. 27). Essa afirmação é poderosa. Toda criatura depende de Deus. Se Ele dá, todos se saciam. Se Ele retira o fôlego, morrem. Se sopra seu Espírito, a terra se renova.
Essa dependência radical me faz pensar na fragilidade da vida. Calvino comenta que “quando Deus se digna a olhar para nós, parece dar-nos vida; e quando seu semblante brilha, inspira as criaturas com vida” (CALVINO, 2009, p. 657). Isso é ainda mais profundo quando entendemos que “o Espírito de Deus que criou no princípio, cria até hoje” (LOPES, 2022, p. 1121).
Cumprimento das profecias
O Salmo 104 não apresenta uma profecia direta sobre o Messias, mas seus temas apontam para Cristo de maneira poderosa. Ele é o Senhor da criação, como revelado em João 1:3: “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez”.
O Espírito que renova a terra (v. 30) é o mesmo Espírito que dá nova vida em Cristo. E o pão, o vinho e o azeite (v. 15) simbolizam, no Novo Testamento, elementos que apontam para a ceia do Senhor e a plenitude do Espírito.
Significado dos nomes e simbolismos
- Luz como veste – Representa a glória visível de Deus, como em 1 Timóteo 6:16: “Ele habita em luz inacessível”.
- Carruagem de nuvens – Imagem de autoridade. Nos textos antigos, isso se relacionava com deuses das tempestades. No Salmo 104, o controle total é do Senhor.
- Leviatã – Símbolo do caos domado. Não é rival, mas criatura. Deus brinca com ele, demonstrando soberania.
- Pão, vinho e azeite – Símbolos da provisão divina. Remetem ao sustento físico e à celebração espiritual.
- Espírito que renova – Refere-se à ação constante de Deus na criação, mas também antecipa a regeneração espiritual em Cristo.
Lições espirituais e aplicações práticas
- A criação revela Deus – Cada detalhe do mundo aponta para o Criador. Ver a natureza com reverência nos ajuda a adorá-lo com mais intensidade.
- Deus continua sustentando o mundo – Nada é aleatório. O ciclo da vida, a chuva, a ordem do dia e da noite, tudo isso reflete a providência divina.
- A adoração começa com admiração – Como no versículo 1, eu sou chamado a despertar minha alma para louvar, ao contemplar a grandeza de Deus.
- A dependência de Deus é total – Nada no universo vive sem Ele. Isso me ensina a viver em humildade e gratidão.
- O cuidado de Deus é universal – Animais, montanhas, mares e florestas: tudo recebe o cuidado do Criador. Se Ele cuida da criação, quanto mais de mim.
- O pecado é a dissonância da criação – O versículo 35 mostra que os ímpios não harmonizam com o louvor universal. A nova criação eliminará essa dissonância (Apocalipse 21).
Conclusão
O Salmo 104 é um convite para ver o mundo com olhos de fé. Ao contemplar as montanhas, os rios, os animais, o céu e o mar, eu percebo a mão de Deus em tudo. Ele não é um Deus distante, mas um Pai que cuida dos detalhes. Ele criou, sustenta e renova. O universo é um grande templo onde a criação inteira o adora. E eu sou chamado a fazer parte desse coral.
Como termina o salmista: “Bendiga ao Senhor a minha alma! Aleluia!” (v. 35). Que essa seja também a minha resposta.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 637–663.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1113–1123.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 712–713.