O Salmo 106 é um salmo histórico e confessional. Ele conclui o Livro IV do Saltério e forma um par com o Salmo 105. Enquanto o Salmo 105 celebra os feitos poderosos de Deus, o 106 revela os fracassos contínuos do povo. Juntos, esses dois salmos apresentam uma teologia equilibrada: Deus é fiel, mas o ser humano é propenso à rebeldia.
Embora o autor seja anônimo, o contexto sugere que o salmo foi escrito durante ou após o exílio babilônico. O povo está disperso entre as nações (v. 47), e o salmista clama por restauração, lembrando os erros cometidos ao longo da história de Israel. Ele usa a narrativa para fazer uma confissão nacional e, ao mesmo tempo, expressar esperança no amor leal de Deus.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “o salmista não está apenas relatando fatos passados, mas fazendo teologia a partir da história” (LOPES, 2022, p. 1059). João Calvino destaca que “esse salmo ensina que a lembrança dos nossos pecados deve sempre ser acompanhada da lembrança da misericórdia de Deus” (CALVINO, 2009, p. 95). A intenção é clara: mostrar que a infidelidade humana nunca foi capaz de frustrar a fidelidade divina.
1. Um início de louvor e súplica (Sl 106:1–5)
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O salmo começa com um convite à ação de graças: “Dêem graças ao Senhor porque ele é bom; o seu amor dura para sempre” (v. 1). Essa fórmula é repetida em outros salmos, como no Salmo 107, e estabelece um tom de fé e esperança. O versículo 2 reconhece que ninguém é capaz de descrever plenamente os feitos de Deus.
Nos versículos 3 a 5, o salmista enfatiza a importância da retidão e da justiça, enquanto clama por misericórdia pessoal: “Lembra-te de mim, Senhor…” (v. 4). Ele deseja fazer parte da restauração do povo e se alegrar com o livramento prometido.
Ao ler esse trecho, percebo que a gratidão é o ponto de partida da intercessão. Antes de pedir, o salmista louva. Como cristão, eu aprendo que minha oração deve começar com o reconhecimento da bondade de Deus, como também se vê em Filipenses 4:6.
2. Confissão de pecado coletivo (Sl 106:6–12)
“Pecamos como os nossos antepassados” (v. 6). O salmista não tenta se isentar da culpa. Ele se inclui na história de pecado do povo. Essa confissão é essencial. Mesmo diante das maravilhas feitas no Egito, os israelitas se rebelaram (v. 7), mas Deus os salvou por amor ao seu nome (v. 8).
A abertura do Mar Vermelho (v. 9), a destruição dos inimigos (v. 10-11) e o cântico de louvor (v. 12) mostram a graça abundante. O paralelo com o Salmo 78 revela que a história se repete: Deus age com poder, mas o povo rapidamente esquece.
Calvino observa que “o milagre do mar era suficiente para alimentar a fé por gerações, mas eles logo se esqueceram” (CALVINO, 2009, p. 96). Eu aprendo que a fé precisa de memória. Sem lembrar da ação de Deus, não conseguimos perseverar.
3. Esquecimento e idolatria (Sl 106:13–23)
O esquecimento das obras de Deus (v. 13) leva o povo a cair na gula (v. 14) e a desafiar o Senhor. Como resultado, recebem juízo (v. 15). O episódio de Corá, Datã e Abirão (v. 16-18) mostra que rebeldia espiritual tem consequências sérias, como vemos também em Números 16.
Em Horebe, fazem o bezerro de ouro (v. 19-20). O salmista denuncia a troca: a Glória foi substituída pela imagem de um boi. João H. Walton afirma que “o uso da palavra ‘Glória’ indica a presença divina sendo desprezada” (WALTON et al., 2018, p. 764).
Mesmo diante de tudo, Deus não os destrói, por causa da intercessão de Moisés (v. 23). Isso aponta para Cristo, como veremos adiante, e também ecoa o papel de mediador que aparece em Êxodo 32.
4. Rebeldia na terra prometida (Sl 106:24–27)
Israel rejeita a terra desejável e duvida da promessa (v. 24). O povo se queixa em suas tendas (v. 25), o que mostra um coração amargo e rebelde. Como consequência, Deus jura que aquela geração morreria no deserto (v. 26).
Essa passagem ecoa Números 14, quando o povo desanima diante dos gigantes de Canaã. Como cristão, eu entendo que murmuração e incredulidade não são pequenas falhas — são rejeições diretas ao plano de Deus.
5. Apostasia e zelo santo (Sl 106:28–31)
O culto a Baal-Peor (v. 28) envolve idolatria e imoralidade sexual. A praga que Deus envia (v. 29) só é detida quando Finéias se levanta com zelo (v. 30). Esse gesto lhe é creditado como justiça (v. 31), o que o coloca entre os heróis da fé.
Em Números 25, lemos que Finéias mata um casal em flagrante idolatria. Hernandes Dias Lopes explica que “o zelo de Finéias não era raiva pessoal, mas indignação espiritual diante do pecado” (LOPES, 2022, p. 1062). Eu aprendo que zelo pela santidade ainda é necessário hoje.
6. A falha de Moisés e a rebelião em Meribá (Sl 106:32–33)
Mesmo Moisés erra. Em Meribá, ele fala com ira e age sem refletir (v. 32-33). Deus não ignora o erro e o disciplina, impedindo sua entrada na terra prometida. João Calvino diz que “quanto maior a liderança, maior a responsabilidade” (CALVINO, 2009, p. 100). Essa lição é clara em Números 20.
7. Mistura com as nações e idolatria extrema (Sl 106:34–39)
Israel não destrói as nações como ordenado (v. 34). Pior: imita suas práticas (v. 35), presta culto a ídolos (v. 36) e chega ao horror de sacrificar seus filhos (v. 37-38). A terra é contaminada com sangue inocente.
O salmista diz que o povo se prostituiu por suas ações (v. 39). Isso nos lembra de Oséias 4, onde a idolatria é comparada ao adultério espiritual. Como cristão, eu sou chamado à separação do pecado, mesmo quando ele é comum ao meu redor.
8. Juízo, misericórdia e restauração (Sl 106:40–48)
Deus entrega o povo às nações (v. 41), e eles são oprimidos (v. 42). Mesmo assim, Deus os liberta muitas vezes (v. 43). Quando o clamor sobe, Ele se lembra da aliança (v. 45) e move o coração dos inimigos para ter misericórdia (v. 46).
O salmo termina com um clamor: “Salva-nos, Senhor, nosso Deus!” (v. 47). E, por fim, uma doxologia (v. 48) encerra o salmo com louvor. Como também ocorre em Salmo 126, a restauração vem acompanhada de gratidão e glória.
Cumprimento das profecias
Embora não traga profecias diretas, o Salmo 106 aponta para Cristo em vários momentos. A intercessão de Moisés (v. 23) prefigura Jesus, o mediador da nova aliança, como lemos em Hebreus 9. O zelo de Finéias aponta para o Cristo que zela pela santidade da Igreja.
A restauração no exílio simboliza a redenção plena em Cristo. A fidelidade de Deus à aliança é cumprida definitivamente em Jesus, como ensina 2 Timóteo 2:13: “se somos infiéis, ele permanece fiel.”
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 106
- Mar Vermelho – Libertação e vitória. Símbolo da redenção.\n- Bezerro de ouro – Idolatria da autossuficiência. Rejeição da Glória.\n- Finéias – Zelo pela aliança. Justiça ativa.\n- Meribá – Lugar de prova e tropeço. Símbolo do conflito espiritual.\n- Sangue inocente – Pecado extremo. Contaminação espiritual.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 106
- 1.A história da salvação é também uma história de queda.
- 2. Deus é fiel, mesmo quando falhamos repetidamente.
- 3. O esquecimento espiritual é o início do declínio moral.
- 4. A intercessão e o arrependimento movem o coração de Deus.
- 5. O zelo pela santidade ainda é necessário na vida cristã.
- 6. A idolatria moderna pode ser mais sutil, mas é igualmente perigosa..
Conclusão
O Salmo 106 é um espelho da condição humana. Ele nos lembra que, apesar de nossos fracassos, Deus permanece fiel à sua aliança. A graça não anula a justiça, mas nos convida ao arrependimento. Ao olhar para a história de Israel, vejo a minha própria jornada: altos e baixos, quedas e resgates, fracassos e recomeços. Mas também vejo um Deus que ouve, salva e restaura.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 95–100.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 2, p. 1059–1065.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 764–766.