O Salmo 124 é atribuído a Davi e faz parte dos Cânticos de Romagem, um grupo de salmos (Sl 120–134) usados pelo povo de Israel enquanto subia a Jerusalém para as festas anuais (como a Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos). Esses cânticos tinham forte valor litúrgico e espiritual, alimentando a memória coletiva dos grandes feitos de Deus.
Não há consenso sobre o momento exato em que Davi escreveu esse salmo. Hernandes Dias Lopes sugere que ele poderia ter sido composto após a vitória sobre Golias, durante a fuga de Saul ou na crise causada por Absalão (LOPES, 2022, p. 1351). Em qualquer caso, o pano de fundo é uma situação de perigo extremo, onde o povo de Deus viu a destruição muito próxima.
Davi registra um testemunho poderoso: o livramento só foi possível porque o Senhor estava ao lado do povo. Essa convicção reforça uma teologia de aliança — Deus se compromete com o Seu povo e atua a favor dele nas situações mais ameaçadoras.
Calvino destaca que o salmo não se restringe a um evento histórico específico, mas representa “a condição incerta e mutável da Igreja” ao longo da história (CALVINO, 2009, p. 351). Ele aponta que Davi quis despertar o povo para o reconhecimento contínuo da graça de Deus, que os livra das armadilhas visíveis e invisíveis.
1. Confiança construída sobre livramentos (Sl 124:1–2)
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“Se o Senhor não estivesse do nosso lado; que Israel o repita: se o Senhor não estivesse do nosso lado quando os inimigos nos atacaram…” (vv. 1-2)
A repetição proposital reforça o que foi vivido: Deus foi o único responsável pela preservação do povo. Davi não fala de forma hipotética, mas de maneira grata e realista. O “se” introduz uma reflexão profunda: o que teria sido de nós sem o Senhor?
Calvino observa que o ser humano tem uma tendência a esquecer a graça de Deus logo após o livramento. Por isso, Davi repete e insiste, para que o povo não obscureça a mão divina com explicações naturais (CALVINO, 2009, p. 352).
Ao ler esses versículos, eu percebo como, às vezes, tenho a memória curta. Deus já me livrou de situações das quais jamais teria saído sozinho. Mas, depois de um tempo, começo a achar que foi sorte, ou que consegui resolver com minha habilidade. Esse salmo me chama de volta à gratidão.
2. Perigos reais e intervenções divinas (Sl 124:3–5)
“…eles já nos teriam engolido vivos, quando se enfureceram contra nós; as águas nos teriam arrastado e as torrentes nos teriam afogado…” (vv. 3–5)
Aqui, Davi usa imagens fortes para descrever os inimigos: bestas ferozes e forças naturais avassaladoras. Walton destaca que essas metáforas — monstros, dilúvios e armadilhas — eram comuns no imaginário antigo e remetem à vulnerabilidade humana diante de forças destrutivas (WALTON et al., 2018, p. 720).
Spurgeon, citado por Lopes, observa que a ira do mundo nunca é tão intensa quanto quando se volta contra o povo de Deus. Quando a fúria explode, parece que seremos engolidos vivos. Mas Deus intervém — e é isso que muda tudo (LOPES, 2022, p. 1352).
Ao ler essas imagens, lembro de momentos em que me senti prestes a afundar. Às vezes, as “águas” vêm na forma de ansiedade, crises, opressões. Mas Deus estava ali. O livramento pode ter sido silencioso, mas foi decisivo.
3. A intervenção do libertador (Sl 124:6–7)
“Bendito seja o Senhor, que não nos entregou para sermos dilacerados pelos dentes deles. Como um pássaro escapamos da armadilha do caçador…” (vv. 6–7)
A metáfora do passarinheiro se destaca. Walton aponta que os egípcios usavam redes, laços e até iscas para capturar bandos de aves, e essa imagem era comum na arte antiga (WALTON et al., 2018, p. 720). O laço representa um perigo oculto, sorrateiro. O povo estava preso e, de repente, o laço se rompeu — um milagre aconteceu.
Calvino observa que essa imagem representa a condição do povo de Deus: frágil, sem recursos, cercado por forças e astúcias humanas. A libertação não vem da força própria, mas da mão que quebra o laço (CALVINO, 2009, p. 355).
Isso fala comigo de maneira muito pessoal. Quantas vezes fui atraído por algo aparentemente inofensivo — uma distração, um pecado sutil — e, quando percebi, estava enredado. E mesmo sem forças para sair, Deus me libertou. “A armadilha foi quebrada, e nós escapamos” — que versículo poderoso.
4. O socorro que vem do Criador (Sl 124:8)
“O nosso socorro está no nome do Senhor, que fez os céus e a terra” (v. 8)
O salmo termina com uma declaração de fé firme. Davi não apenas diz que o Senhor socorreu, mas declara que o Seu nome — Sua identidade revelada — é o socorro. Calvino destaca que “o nome de Deus nada mais é do que o próprio Deus” (CALVINO, 2009, p. 356). E Deus não é apenas um aliado qualquer: Ele é o Criador de tudo.
Esse versículo ecoa o que lemos em Salmo 121: “o meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra”. Saber que o Deus que nos ajuda é o mesmo que criou tudo nos dá uma base inabalável para enfrentar os dias difíceis.
Diante de tantos recursos humanos em que o mundo confia — poder, dinheiro, influência — eu sou lembrado de que meu verdadeiro auxílio vem do alto. Não é uma força impessoal. É uma presença pessoal, o Deus da aliança.
Cumprimento das profecias
O Salmo 124 não traz uma profecia messiânica explícita, mas aponta para Cristo de maneira profunda. Jesus é o verdadeiro Libertador, que nos resgatou do pecado, da morte e do poder do Diabo. A linguagem usada por Davi — ser engolido, afogado, enredado — descreve perfeitamente o estado espiritual do ser humano sem Deus.
Cristo, como afirma Pedro, “nos libertou da vossa vã maneira de viver” (1Pe 1:18). Ele é aquele que “veio buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19:10). A maior de todas as armadilhas é o pecado, e a cruz foi onde o laço foi finalmente quebrado.
Derek Kidner afirma que esse socorro invisível de Deus é mais real que qualquer estratégia humana (apud LOPES, 2022, p. 1355). Em Cristo, esse socorro se tornou visível. Ele é o nome acima de todo nome, onde encontramos redenção, como Paulo diz em Filipenses 2:9–11.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 124
- Laço do passarinheiro – Armadilha oculta, símbolo do pecado, das tentações e da astúcia do inimigo. Também pode representar falsas doutrinas ou seduções espirituais (cf. Ec 11:10).
- Águas violentas – Inundações inesperadas, símbolos de caos, opressão e destruição (cf. Jr 47:1–4).
- Engolidos vivos – Expressão da brutalidade dos inimigos espirituais ou físicos. Remete à ideia de morte iminente.
- Nome do Senhor – Refere-se à identidade revelada de Deus, especialmente como socorro e protetor do Seu povo.
- Criador dos céus e da terra – Enfatiza o poder absoluto de Deus. O mesmo que criou o universo intervém na vida humana.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 124
- Deus está ao nosso lado mesmo quando o caos nos cerca – Como o povo de Israel, eu posso enfrentar forças maiores do que eu, mas nunca maiores que o Senhor.
- Nossa memória precisa ser educada para a gratidão – Davi repete verdades para combater o esquecimento. Eu também preciso lembrar, agradecer e testemunhar.
- Os laços são reais, mas Deus os quebra – As armadilhas da vida espiritual não são metáforas vazias. São reais, mas não são finais.
- O livramento nem sempre é visível, mas é real – Muitas vezes, Deus age sem alarde, rompendo laços que eu nem sabia que estavam ali.
- O nome do Senhor é um abrigo seguro – Quando tudo parece desmoronar, eu posso correr para o nome do Senhor, como uma torre forte.
- A maior libertação é espiritual e eterna – Como diz Augustus Nicodemus, a libertação mais preciosa que Deus nos oferece é aquela que nos tira da condenação eterna (apud LOPES, 2022, p. 1355). Em Jesus, somos mais que vencedores.
Conclusão
O Salmo 124 é um testemunho poderoso de livramento, gratidão e fé. Ele nos lembra que, sem Deus, estaríamos perdidos — engolidos, afogados, enredados. Mas o Senhor esteve ao nosso lado. Ele é nosso socorro, nosso Libertador. Hoje, como povo de Cristo, continuamos enfrentando perigos reais, mas sabemos onde está nossa esperança: no nome do Senhor, que fez os céus e a terra.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 351–356.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1351–1355.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 720.