O Salmo 136 é um hino antifônico, feito para ser cantado responsivamente entre o dirigente e a congregação. Cada versículo termina com a frase “O seu amor dura para sempre”, ou, no hebraico, chesed leolam. Esse padrão repetitivo não é mera formalidade, mas uma forma pedagógica e litúrgica de fixar a verdade central do salmo: a misericórdia de Deus sustenta todas as coisas.
Derek Kidner observa que esse salmo é conhecido na tradição judaica como o “Grande Hallel”, usado em momentos solenes como a dedicação do templo de Salomão (2Crônicas 7:3–6) e na vitória de Josafá contra os inimigos (2Crônicas 20:21) (LOPES, 2022, p. 1459). Segundo Calvino, esse refrão fazia parte do louvor ordenado por Davi aos levitas, para lembrar continuamente que tudo vem de Deus e nada é merecido (CALVINO, 2009, p. 455).
Do ponto de vista teológico, o salmo atravessa a criação, a história do êxodo, a conquista de Canaã e a providência contínua. Em todas essas áreas, a misericórdia de Deus se destaca como o fio que une o passado, o presente e o futuro do povo de Deus.
1. Louvor ao Deus único e supremo (Sl 136:1–3)
>>> Inscreva-se em nosso Canal no YouTube
“Dêem graças ao Senhor, porque ele é bom. O seu amor dura para sempre!” (v. 1)
O salmista inicia com um chamado à gratidão, exaltando a bondade essencial de Deus. Ele é apresentado como Senhor, Deus dos deuses e Senhor dos senhores. Essas expressões também aparecem em Deuteronômio 10:17, sublinhando a soberania do Senhor sobre todos os poderes, sejam humanos ou espirituais.
John H. Walton destaca que essas expressões refletem uma cosmovisão onde existiam muitas divindades menores, mas o salmista reafirma: só Yahweh é supremo (WALTON et al., 2018, p. 722). Calvino acrescenta que essa multiplicidade reflete a tendência humana à idolatria, e o salmista a combate declarando que toda autoridade pertence ao Deus único (CALVINO, 2009, p. 455).
Esse início me lembra que adoração começa reconhecendo quem Deus é, não apenas o que Ele faz. É a Sua bondade que sustenta tudo.
2. O Deus criador e sábio (Sl 136:4–9)
“Ao único que faz grandes maravilhas, O seu amor dura para sempre!” (v. 4)
A criação é uma expressão do amor eterno de Deus. Cada detalhe — os céus, a terra, os luminares — é fruto da Sua sabedoria e graça. Como descrito em Gênesis 1, Deus cria com ordem e propósito.
O versículo 6, “que estendeu a terra sobre as águas”, tem relação com a cosmologia do Antigo Oriente. Walton explica que os povos antigos acreditavam que a terra flutuava sobre águas primitivas (apsu), governadas por deuses como Enki. Mas o salmista afirma: foi o Senhor quem fez isso (WALTON et al., 2018, p. 722).
Calvino comenta que mesmo os filósofos reconhecem essa maravilha — um espaço seco, firme e habitável, sustentado por Deus com um propósito: a vida humana (CALVINO, 2009, p. 456).
Ao contemplar a criação, vejo mais do que beleza: vejo um lembrete diário de que a misericórdia de Deus me cerca desde o princípio.
3. O Deus libertador (Sl 136:10–16)
“Àquele que matou os primogênitos do Egito, O seu amor dura para sempre!” (v. 10)
A narrativa do êxodo é o centro da identidade de Israel. Deus libertou seu povo do Egito com mão forte, dividiu o mar Vermelho e conduziu o povo pelo deserto. Como afirma Êxodo 14, Deus abriu um caminho onde não havia nenhum.
Segundo Hernandes Dias Lopes, o êxodo é a manifestação clara da graça de Deus: Ele os tirou do Egito, os sustentou no deserto e os guiou até Canaã (LOPES, 2022, p. 1462). Calvino reforça que essa libertação não foi natural, mas sobrenatural — Deus estendeu seu braço, o que simboliza esforço e poder extraordinário (CALVINO, 2009, p. 457).
Isso me ensina que a redenção não depende do meu esforço. Deus é quem liberta, sustenta e guia.
4. O Deus vitorioso (Sl 136:17–22)
“que feriu grandes reis, O seu amor dura para sempre!” (v. 17)
Aqui o salmista lembra das vitórias na travessia do deserto, especialmente sobre Seom e Ogue, reis poderosos que tentaram impedir Israel. Os relatos dessas batalhas estão em Números 21:21–35 e Deuteronômio 3:1–11.
Calvino enfatiza que essas conquistas não aconteceram por mérito humano. A herança foi dada, não conquistada: “não se tornou propriedade dos israelitas pela sua própria espada” (CALVINO, 2009, p. 459).
Esse trecho me lembra que, muitas vezes, Deus nos dá vitórias que não conseguimos explicar. Ele abre portas, derruba gigantes e nos concede aquilo que prometeu.
5. O Deus consolador e provedor (Sl 136:23–26)
“Àquele que se lembrou de nós quando fomos humilhados, O seu amor dura para sempre!” (v. 23)
Nos versículos finais, o salmo se torna pessoal. Deus “se lembrou de nós”, “nos livrou dos adversários” e “dá alimento a toda carne”. Isso é uma bela transição da história para a experiência cotidiana.
Calvino afirma que o salmista quer mostrar que “a mesma bondade manifestada aos pais continua presente em cada geração” (CALVINO, 2009, p. 461). Como está escrito em Salmo 23, o Senhor é o nosso pastor todos os dias.
Essa verdade me conforta: Deus não apenas agiu no passado. Ele continua agindo. Ele se lembra de mim hoje.
Cumprimento das profecias
O Salmo 136 não traz profecias diretas sobre o Messias, mas seu conteúdo aponta para Cristo. Ele é o novo Moisés, o verdadeiro Libertador, como vemos em João 8:36.
Cristo também é a manifestação máxima do chesed de Deus. Em Romanos 5:8, lemos: “Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores”. Ele é a Rocha, o Maná, a Coluna de fogo, o Bom Pastor — tudo aquilo que vimos no Antigo Testamento é revelado em plenitude em Jesus.
Significado dos nomes e simbolismos
- Chesed – Amor firme, leal e duradouro. A base da aliança e da fidelidade de Deus.
- Mar Vermelho – Símbolo da redenção. Aponta para a libertação espiritual em Cristo.
- Seom e Ogue – Representam obstáculos imensos superados pela graça de Deus.
- Herança – Alusão à Terra Prometida, símbolo da nossa herança eterna (1Pedro 1:4).
- Deus dos céus – Título que indica soberania universal. Aparece pela primeira vez em Salmos.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 136
- Deus é digno de louvor por quem Ele é, não só pelo que faz.
- Toda a criação testemunha da Sua misericórdia eterna.
- A história da redenção é a base da nossa fé e adoração.
- Vitórias espirituais são resultado da ação divina, não da nossa força.
- Deus cuida de nós em detalhes: lembra, liberta e provê.
- Em Cristo, vemos o cumprimento total do amor eterno de Deus.
Conclusão
O Salmo 136 é uma celebração da fidelidade de Deus ao longo da história. Com 26 repetições do refrão “O seu amor dura para sempre”, ele nos ensina que a misericórdia divina é o alicerce de tudo. Ao contemplar a criação, a libertação, as vitórias e a provisão, somos convidados a louvar — não por formalidade, mas por convicção.
Esse salmo me desafia a lembrar todos os dias da fidelidade de Deus. A história de Israel é também a minha história. E a mesma misericórdia que os sustentou continua operando hoje. Por isso, como Igreja, devemos repetir sem cessar: O seu amor dura para sempre.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 455–462.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1459–1466.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 722.