O Salmo 89 é atribuído a Etã, o ezraíta, personagem mencionado em 1 Reis 4:31, conhecido por sua sabedoria. Ele também aparece como cantor em 1 Crônicas 15:17, colaborador na adoração durante o reinado de Davi. Este salmo se destaca por sua extensão e estrutura complexa, contendo elementos de louvor, teologia da aliança e um lamento profundo pela aparente rejeição de Deus.
O pano de fundo histórico provável é o período pós-exílico ou um momento de crise no reinado davídico. Apesar das promessas feitas por Deus a Davi (2Sm 7), o salmista observa uma realidade dolorosa: o trono foi abalado, o povo humilhado e os inimigos triunfantes. Por isso, o salmo alterna entre exaltação à fidelidade de Deus e clamor angustiado diante da ruptura visível dessa fidelidade.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “o salmo alterna entre teologia e emoção, fé e perplexidade” (LOPES, 2022, p. 922). Já Calvino destaca que “o Espírito Santo, ao ditar este cântico, nos ensina a não nos escandalizarmos quando as promessas de Deus parecem não se cumprir” (CALVINO, 2009, p. 333).
Essa tensão entre o eterno e o temporal é o cerne do Salmo 89. Ele começa com louvor à fidelidade de Deus, passa pela celebração da aliança com Davi e termina com um lamento profundo diante do aparente fracasso dessa promessa.
1. Louvor à fidelidade eterna de Deus (Sl 89:1–18)
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“Cantarei para sempre o amor do Senhor; com minha boca anunciarei a tua fidelidade por todas as gerações.” (v. 1)
Os primeiros dezoito versículos formam uma poderosa introdução de louvor. O salmista celebra o amor leal (ḥéṣed) e a fidelidade de Deus, atributos centrais da aliança. Ele reconhece que essas virtudes são firmadas nos céus, acima das flutuações terrenas (v. 2).
O trecho também exalta o domínio de Deus sobre a criação (v. 9–12), incluindo o mar revolto, símbolo de caos, e o “Monstro dos Mares” (v. 10), referência ao Rahab, um ser mitológico usado poeticamente para descrever Egito ou forças do mal. Deus é apresentado como Rei justo e forte, cujos fundamentos são a retidão e a fidelidade (v. 14).
Eu aprendo que a fé precisa ser construída sobre os atributos imutáveis de Deus, não nas circunstâncias. Mesmo quando tudo parece desmoronar, o caráter de Deus permanece inabalável. Assim como em Salmo 97, o trono de Deus está firmado em justiça, não em aparências.
2. A aliança com Davi (Sl 89:19–37)
“Numa visão falaste um dia, e aos teus fiéis disseste: ‘Cobri de forças um guerreiro, exaltei um homem escolhido dentre o povo.’” (v. 19)
A segunda seção é uma exposição clara da aliança davídica, com base em 2 Samuel 7. Deus escolheu Davi, ungiu-o com óleo, prometeu sua proteção e sucesso, e afirmou que sua linhagem seria eterna (v. 28–29). A linguagem da aliança é reiterada com ênfase: “Não violarei a minha aliança nem modificarei as promessas dos meus lábios” (v. 34).
Mesmo com a possibilidade de desobediência dos descendentes (v. 30–32), Deus reafirma que não retirará seu amor. Calvino comenta: “a promessa não é quebrada pelas falhas dos homens, pois está firmada na fidelidade divina” (CALVINO, 2009, p. 336).
O versículo 27 é messiânico em essência: “Também o nomearei meu primogênito, o mais exaltado dos reis da terra”. Essa expressão vai muito além de Salomão ou qualquer outro rei terreno. Ela aponta para Jesus, o verdadeiro herdeiro do trono de Davi.
Como cristão, eu encontro segurança aqui. A fidelidade de Deus não depende da minha constância. Mesmo quando falho, Ele permanece fiel àquilo que prometeu, como vemos também em 2 Timóteo 2:13: “se somos infiéis, ele permanece fiel”.
3. A crise da aliança (Sl 89:38–45)
“Mas tu o rejeitaste, recusaste-o e te enfureceste com o teu ungido.” (v. 38)
Esta é a virada dramática do salmo. O tom muda radicalmente. Depois de exaltar as promessas de Deus, o salmista lamenta o que parece uma rejeição divina. Os muros foram derrubados, a coroa lançada ao chão (v. 39–40), os inimigos triunfam (v. 41–42) e a juventude do rei é coberta de vergonha (v. 45).
O choque é teológico e emocional. Como conciliar promessas eternas com derrotas tão reais? O salmista não está duvidando de Deus, mas expressando sua dor. Ele ora com coragem, expondo a incoerência aparente entre o que Deus prometeu e o que se vê.
Calvino explica: “nada é mais comum do que vermos a promessa parecer abolida, mas isso nos ensina a perseverar em fé” (CALVINO, 2009, p. 338). A fé madura não ignora a crise, mas a leva diretamente a Deus.
Ao ler este trecho, eu percebo que também posso lamentar. Não há pecado em dizer “Senhor, parece que o Senhor esqueceu de mim”. Deus aceita esse tipo de oração, porque ela brota de um coração que ainda crê, mesmo quando não entende.
4. Clamor pela restauração (Sl 89:46–51)
“Até quando, Senhor? Para sempre te esconderás? Até quando a tua ira queimará como fogo?” (v. 46)
O salmista implora por resposta. Ele questiona a duração da ira divina, relembra a brevidade da vida humana (v. 47–48) e apela à fidelidade passada de Deus. “Ó Senhor, onde está o teu antigo amor, que com fidelidade juraste a Davi?” (v. 49).
Esse tipo de oração é comum nos salmos de lamento. O salmista não cobra Deus de maneira arrogante, mas suplica com base na aliança. Ele pede que o Senhor se lembre das afrontas, da humilhação pública e da zombaria que o ungido sofre (v. 50–51).
Hernandes Dias Lopes comenta que “as lágrimas do salmista se tornam argumento diante do trono” (LOPES, 2022, p. 925). Esse trecho me ensina que posso orar com honestidade. Quando tudo parece perdido, ainda posso recorrer à fidelidade de Deus.
5. Doxologia final (Sl 89:52)
“Bendito seja o Senhor para sempre! Amém e amém.” (v. 52)
O salmo termina com um ato de fé. Mesmo em meio à crise, Etã louva a Deus. Essa doxologia é comum no encerramento dos livros do Saltério, como também se vê no Salmo 41:13. É como se o salmista dissesse: “Mesmo sem respostas, eu continuarei confiando”.
Como cristão, eu aprendo que a fé verdadeira continua adorando mesmo quando não entende os caminhos de Deus. Essa confiança é o que sustenta a esperança.
Cumprimento das profecias
O Salmo 89 está impregnado de elementos messiânicos. A promessa feita a Davi aponta diretamente para Cristo, o Filho de Deus e herdeiro do trono eterno (Lc 1:32-33). O versículo 27 – “o mais exaltado dos reis da terra” – é citado em Apocalipse 1:5, referindo-se a Jesus como “o primogênito dentre os mortos, o soberano dos reis da terra”.
A dor do salmista por ver a aliança aparentemente quebrada se cumpre em Cristo, que na cruz também pareceu abandonado (Mt 27:46). No entanto, a ressurreição confirma que Deus não mente nem volta atrás em suas promessas.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 89
- Etã, o ezraíta – Possivelmente um sábio e músico da linhagem levítica. Seu nome significa “permanente”, o que contrasta com a sensação de perda que expressa.
- Monstro dos Mares (Rahab) – Figura simbólica do caos e da opressão, usada poeticamente para representar o Egito.
- Primogênito – No contexto da aliança, indica supremacia, não necessariamente o primeiro em ordem de nascimento. Aplicado a Cristo em sentido escatológico.
- Aliança com Davi – Refere-se à promessa divina de uma linhagem real perpétua. É central para a teologia messiânica.
- Trono lançado ao chão – Imagem da perda do poder real e humilhação da linhagem davídica.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 89
- A fidelidade de Deus é inabalável, mesmo quando não compreendemos o que Ele faz – Podemos descansar em seu caráter eterno.
- Promessas não anulam provas – Mesmo alianças eternas passam por crises aparentes. A fé se prova no silêncio.
- Deus acolhe nossas perguntas sinceras – O lamento é uma forma legítima de oração quando se baseia na aliança.
- Cristo é o cumprimento da promessa feita a Davi – Nele, temos um Rei eterno, justo e presente.
- A adoração persevera, mesmo sem respostas – Louvar em meio à dor é sinal de fé madura.
- A vida é breve, mas a aliança é eterna – Devemos viver com esperança, não baseados na duração da vida, mas na fidelidade de Deus.
Conclusão
O Salmo 89 nos conduz da celebração à crise, da teologia à oração angustiada. Ele nos ensina que a fé verdadeira não ignora as dores, mas as leva ao trono de Deus. Mesmo quando tudo parece perdido, o caráter fiel do Senhor permanece. Cristo é a prova viva de que a aliança com Davi não foi esquecida. Como cristão, eu aprendo que posso confiar em Deus mesmo quando não entendo o que Ele está fazendo. E isso basta para continuar adorando.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 333–338.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 2, p. 922–925.