O Salmo 99 integra a série de cânticos que celebram o reinado de Deus, geralmente agrupados entre os Salmos 93 e 100. Ele não é atribuído a um autor específico, mas apresenta elementos típicos do culto no templo de Jerusalém. Sua ênfase na santidade de Deus o distingue dentro dessa coletânea. A repetição da frase “Ele é santo” (vv. 3, 5 e 9) serve como o refrão que costura os principais temas do salmo.
O pano de fundo do Salmo 99 parece ser litúrgico, provavelmente relacionado à adoração coletiva no templo. As referências ao trono de Deus entre os querubins e à intercessão de figuras como Moisés, Arão e Samuel indicam um profundo vínculo com a história da aliança de Israel, particularmente com os eventos do Êxodo e do deserto. Segundo Hernandes Dias Lopes, “esse salmo tem três partes, nas quais o Senhor é celebrado como aquele que foi, que é e que virá” (LOPES, 2022, p. 1062).
João Calvino destaca que, neste salmo, a adoração se dirige principalmente ao povo da aliança e não aos pagãos, pois “a posteridade de Abraão, em distinção às nações circunvizinhas, é convocada a louvar a Deus pelo privilégio de sua adoção” (CALVINO, 2009, p. 563). A teologia do salmo gira em torno da realeza divina, da justiça de Deus e de sua misericórdia, apontando para um culto que reconhece tanto a majestade quanto a proximidade do Senhor.
1. O Rei que governa com santidade (Salmo 99:1–3)
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“O Senhor reina! As nações tremem! O seu trono está sobre os querubins! Abala-se a terra!” (v. 1)
Este versículo destaca a soberania de Deus. A imagem do trono sobre os querubins remete diretamente à Arca da Aliança, cujo propiciatório era ladeado por duas figuras angelicais. Segundo Walton, “os querubins funcionam como guardiões do trono divino, e a arca é uma representação simbólica do trono invisível de Yahweh” (WALTON et al., 2018, p. 711). Em contextos antigos, tronos cercados por criaturas compostas (como esfinges ou leões alados) eram comuns entre reis e deuses. Essa linguagem reforça o aspecto sagrado e inatingível do domínio divino.
“Grande é o Senhor em Sião; ele é exaltado acima de todas as nações!” (v. 2)
Aqui a realeza de Deus se manifesta em Sião — a cidade santa. Spurgeon comenta que “a igreja é seu palácio favorito, onde sua grandeza é exibida, reconhecida e adorada” (LOPES, 2022, p. 1063). Embora Deus reine sobre o mundo inteiro, Ele escolheu manifestar sua glória de modo especial no meio do seu povo. Como em Salmo 48, Sião aparece como símbolo da comunhão com Deus e da segurança espiritual.
“Seja louvado o teu grande e temível nome, que é santo.” (v. 3)
Este verso conclui a primeira seção do salmo com um chamado à adoração reverente. Deus é temível por causa de sua majestade e santo em sua essência. Calvino enfatiza que “não há mácula, erro ou injustiça em Deus; sua santidade é a própria perfeição” (CALVINO, 2009, p. 565). Essa exaltação da santidade lembra o louvor celestial de Isaías 6:3 e Apocalipse 4:8.
2. O Rei que governa com justiça (Salmo 99:4–5)
“Rei poderoso, amigo da justiça! Estabeleceste a equidade e fizeste em Jacó o que é direito e justo.” (v. 4)
A santidade divina se manifesta também na justiça. Deus ama o juízo e estabelece leis justas para reger seu povo. Enquanto os tronos humanos são muitas vezes marcados por corrupção, o trono de Deus é fundado na equidade. Spurgeon afirma: “no reino de Deus, a verdade brilha em cada linha, a bondade em toda sílaba e a justiça em toda letra” (LOPES, 2022, p. 1064). Isso nos remete a temas recorrentes em Salmo 11 e Salmo 82, que tratam do juízo justo de Deus.
“Exaltem o Senhor, o nosso Deus, prostrem-se diante do estrado dos seus pés. Ele é santo!” (v. 5)
A expressão “estrado dos seus pés” se refere, mais uma vez, à Arca da Aliança. Segundo Calvino, “Deus deseja habitar no meio de seu povo, de forma a elevar os pensamentos além das formas externas do culto” (CALVINO, 2009, p. 566). A adoração genuína exige reverência, pois o culto se volta para um Deus infinitamente santo. Esse chamado à adoração também aparece em Salmo 95, que combina alegria e temor diante do Senhor.
3. O Rei que responde com misericórdia (Salmo 99:6–9)
“Moisés e Arão estavam entre os seus sacerdotes, Samuel, entre os que invocavam o seu nome; eles clamavam pelo Senhor, e ele lhes respondia.” (v. 6)
O salmista destaca exemplos históricos de líderes que intercederam pelo povo. Moisés, Arão e Samuel foram instrumentos da graça divina. Jeremias menciona Moisés e Samuel como intercessores poderosos (Jr 15:1). O próprio salmo reconhece que “eles clamavam e Ele lhes respondia”, indicando que Deus é acessível àqueles que o temem. A intercessão e o arrependimento também estão fortemente presentes em Salmo 106.
“Falava-lhes da coluna de nuvem, e eles obedeciam aos seus mandamentos e aos decretos que ele lhes dava.” (v. 7)
A coluna de nuvem era sinal visível da presença divina no deserto. Walton observa que “ela era um meio de revelação e condução” (WALTON et al., 2018, p. 711). Mesmo em tempos de peregrinação e provação, Deus se manifestava e instruía seu povo. Essa manifestação também é destacada em Êxodo 13:21-22.
“Tu lhes respondeste, Senhor, nosso Deus; para eles, tu eras um Deus perdoador, embora os tenhas castigado por suas rebeliões.” (v. 8)
Este versículo expressa a tensão entre misericórdia e justiça. Deus perdoou, mas também disciplinou. Hernandes Dias Lopes afirma: “embora Deus perdoe, Ele precisa vindicar sua santidade por meio da correção” (LOPES, 2022, p. 1066). Esse equilíbrio entre graça e juízo é visto também em Salmo 78, que narra a rebeldia de Israel e a persistência da misericórdia divina.
“Exaltem o Senhor nosso Deus; prostrem-se, voltados para o seu santo monte, porque o Senhor, o nosso Deus, é santo.” (v. 9)
O salmo se encerra como começou: com um chamado à adoração. Agora, porém, o lugar de adoração é o “santo monte”, indicando a cidade de Jerusalém, mas também apontando para a comunhão futura no Espírito (Jo 4:23). Como afirma Calvino, “Deus deve ser buscado para além dos céus, pois Ele se acha infinitamente acima do mundo” (CALVINO, 2009, p. 571).
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 99 não contenha profecias diretas sobre o Messias, sua teologia aponta para Cristo de diversas maneiras. Jesus é o Rei entronizado à direita de Deus (Hebreus 1:3). Ele é o verdadeiro sumo sacerdote que intercede como Moisés, Arão e Samuel (Hebreus 7:25). Em vez da Arca, temos o próprio Cristo como o lugar de encontro entre Deus e os homens (João 1:14).
A santidade de Deus, reafirmada de forma tríplice neste salmo, ecoa no louvor celestial de Apocalipse 4:8: “Santo, santo, santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso”. Essa reverência continua viva na adoração cristã hoje.
Significado dos nomes e simbolismos
- Querubins – Criaturas compostas, representando guardiões do trono divino. Figura de reverência e poder (WALTON et al., 2018, p. 711).
- Estrado dos seus pés – A Arca da Aliança, símbolo da presença de Deus e do lugar mais próximo do seu trono (CALVINO, 2009, p. 566).
- Coluna de nuvem – Sinal da presença e direção divina durante o Êxodo.
- Monte santo – Refere-se a Sião, mas aponta para o culto verdadeiro, centrado em Cristo e em espírito e verdade (João 4:23).
Lições espirituais e aplicações práticas
- A santidade de Deus exige reverência – Ao ler o Salmo 99, eu aprendo que Deus não pode ser tratado com trivialidade. Ele é santo, e sua presença exige respeito.
- Deus é acessível, mas não manipulável – Moisés, Arão e Samuel foram ouvidos porque viviam em fidelidade. Oração eficaz vem de um coração obediente.
- A justiça de Deus é perfeita – Diferente dos sistemas humanos, o Senhor governa com equidade e juízo.
- Deus perdoa, mas também disciplina – Não posso confundir a graça com permissividade. A correção de Deus é expressão de sua santidade.
- Adoração verdadeira é postura, não performance – Prostrar-se diante do santo monte é reconhecer que Ele reina. Como em Salmo 96, o culto genuíno nasce da submissão.
- A história do povo de Deus é nossa história também – Os exemplos de líderes do passado nos ensinam como caminhar com Deus hoje.
Conclusão
O Salmo 99 é um convite profundo à adoração reverente. Ele proclama que Deus reina com santidade, governa com justiça e responde com misericórdia. Como cristão, eu sou chamado a exaltar esse Rei, prostrar-me diante de sua presença e andar em seus caminhos. Ele é santo — e quer que seu povo reflita essa santidade no mundo. O exemplo de líderes como Moisés, Arão e Samuel me inspira a buscar um relacionamento real com o Deus que responde, perdoa e transforma.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 3, p. 563–572.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1061–1067.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 711.