O Salmo 123 é o quarto dos “Cânticos de romagem” (Sl 120–134), cantado por israelitas em suas peregrinações a Jerusalém. Ele inaugura a segunda tríade da coleção e expressa um lamento coletivo diante do desprezo e da zombaria dos arrogantes.
A autoria é incerta. João Calvino considera improvável que o salmo tenha sido escrito por Davi, já que “ele geralmente menciona suas experiências pessoais nas súplicas” (CALVINO, 2009, p. 346). O texto parece ter sido composto num tempo de aflição nacional, talvez durante o exílio babilônico ou sob o domínio cruel de Antíoco Epifânio.
Segundo Hernandes Dias Lopes, “esse breve salmo é carregado de esperança e confiança. O povo de Deus, mesmo oprimido, olha para o alto e clama por misericórdia” (LOPES, 2022, p. 1343). Trata-se de uma oração simples, mas cheia de profundidade teológica.
Assim como em Salmo 120, o salmista sofre por causa da hostilidade. Mas aqui ele não fala com os inimigos nem com amigos — fala diretamente com Deus.
1. Olhe para o Senhor como Rei soberano (Salmo 123.1)
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“Para ti levanto os meus olhos, a ti, que ocupas o teu trono nos céus.” (v. 1)
O salmo começa com um gesto de fé: levantar os olhos. O salmista não se volta aos montes, como em Salmo 121, mas olha diretamente para o trono do Senhor nos céus.
Spurgeon aponta que essa é “a maior subida de todas”, pois agora os olhos não estão nos perigos nem nas soluções humanas, mas no próprio Deus (LOPES, 2022, p. 1344). O trono celestial é símbolo da soberania de Deus. Mesmo quando tudo parece sair do controle na terra, o céu permanece estável.
Calvino afirma que esse versículo mostra “um contraste entre o caos do mundo e o governo inabalável de Deus” (CALVINO, 2009, p. 346). Isso me desafia a fazer o mesmo. Quando sou desprezado ou me sinto impotente, preciso lembrar que meu Deus ainda reina.
2. Olhe para o Senhor como servo dependente (Salmo 123.2)
“Assim como os olhos dos servos estão atentos à mão de seu senhor, e como os olhos das servas estão atentos à mão de sua senhora, também os nossos olhos estão atentos ao Senhor, ao nosso Deus, esperando que ele tenha misericórdia de nós.” (v. 2)
Aqui a imagem muda: de súditos para servos. No contexto antigo, servos observavam atentamente os sinais das mãos de seus senhores para entender ordens ou aguardar recompensas. O salmista usa essa metáfora para descrever como o povo de Deus depende do Senhor.
Arival Dias Casimiro ressalta que “a espera por misericórdia indica que há um tempo de sofrimento antes da ajuda chegar” (LOPES, 2022, p. 1345). A maturidade espiritual aparece nessa disposição de esperar no tempo de Deus.
Calvino acrescenta que “Deus nos desarma intencionalmente para que aprendamos a confiar em sua graça” (CALVINO, 2009, p. 347). Como servos, não temos controle, mas sabemos que a mão do Senhor pode agir a qualquer momento.
Isso me ensina a ter uma fé que observa, espera e obedece. Me lembro também de Hebreus 12:2, que nos convida a manter os olhos fixos em Jesus, o autor e consumador da fé.
3. Clame por misericórdia diante do desprezo (Salmo 123.3–4)
“Misericórdia, Senhor! Tem misericórdia de nós! Já estamos cansados de tanto desprezo. Estamos cansados de tanta zombaria dos orgulhosos e do desprezo dos arrogantes.” (vv. 3–4)
A súplica se intensifica. O salmista clama por misericórdia — e repete esse pedido como quem chega ao limite. Ele não pede vingança, nem justiça. Só misericórdia. Porque sabe que apenas Deus pode aliviar a dor do desprezo.
Kidner comenta que “o desprezo é como um ferro cortante, que penetra mais profundamente do que outras formas de sofrimento” (LOPES, 2022, p. 1347). O salmista está saturado de zombarias, de humilhação e arrogância.
Calvino escreve que “essa repetição é sinal de intensa necessidade e dor contínua. Eles estavam saturados de zombarias que esmagavam sua alma” (CALVINO, 2009, p. 349). É interessante como o salmo vai da adoração à súplica, da reverência à vulnerabilidade.
Jesus viveu isso intensamente. Ele foi zombado, desprezado, traído. E sua resposta foi a mesma do salmista: entrega à misericórdia do Pai. Como se lê em Isaías 53:3, Ele foi desprezado e dEle não fizemos caso.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 123 não contenha uma profecia direta, ele se cumpre plenamente na pessoa de Jesus Cristo. Ele é o servo por excelência, o que mais sofreu desprezo e zombaria — mas também o que mais confiou no Pai.
Augustus Nicodemus afirma que “Jesus foi rejeitado pelos seus, perseguido de forma injusta, e respondeu com a atitude do salmista: confiou no Pai” (LOPES, 2022, p. 1348). Essa conexão é forte: tanto o salmista quanto Cristo se rendem à misericórdia divina como única saída.
Hoje, como cristãos, também enfrentamos zombaria e desprezo. Mas, como diz Atos 5:41, devemos nos alegrar por sermos considerados dignos de sofrer por causa do nome de Jesus. A zombaria do mundo não rouba o valor que temos diante de Deus.
Significado dos nomes e simbolismos do Salmo 123
- Olhos levantados – Sinal de fé e expectativa. Revela onde está nossa confiança.
- Trono nos céus – Expressa a soberania de Deus. Nada foge ao seu domínio.
- Mão do Senhor – Representa direção, provisão e intervenção.
- Servos e servas – Imagens de dependência e prontidão espiritual.
- Misericórdia – Palavra central do salmo. Reflete um clamor humilde por ajuda.
- Desprezo e zombaria – Representam a oposição do mundo ao povo de Deus. Uma realidade também vivida por Cristo.
Lições espirituais e aplicações práticas do Salmo 123
- Levantar os olhos para Deus é o primeiro passo da oração verdadeira – Quando enfrentamos desprezo ou aflição, o nosso socorro vem do trono nos céus.
- Esperar como servo é um ato de fé – Deus age no tempo certo, e a maturidade espiritual exige que saibamos esperar.
- O clamor por misericórdia é mais poderoso do que exigências por justiça – A graça de Deus sustenta e liberta quando reconhecemos nossa fragilidade.
- Zombarias e desprezo fazem parte da jornada de fé – Como em João 15:18–20, o mundo odiou Jesus e também rejeitará seus discípulos.
- Cristo é nosso modelo diante da humilhação – Ele sofreu em silêncio, confiou no Pai e venceu. Nós também podemos suportar o desprezo, firmes na esperança.
- Mesmo cansados, podemos continuar orando – A oração do salmista mostra que podemos levar a Deus o nosso limite. Ele ouve.
Conclusão
O Salmo 123 é uma oração curta, mas cheia de confiança. O salmista não perde tempo reclamando com homens. Ele levanta os olhos e clama a Deus, como um servo que depende completamente da mão do seu Senhor.
Esse salmo me ensina que a espiritualidade madura não é medida pelo quanto falamos, mas pela postura do nosso coração. Quando enfrentamos zombarias, rejeições ou humilhações, devemos responder com fé, como Jesus — confiando na misericórdia do Pai.
O desprezo dos arrogantes pode ser doloroso, mas não é definitivo. Nosso Deus continua entronizado nos céus. E, como filhos e servos, podemos manter nossos olhos fixos nEle até que sua misericórdia nos alcance.
Referências
- CALVINO, João. Salmos, org. Franklin Ferreira, Tiago J. Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira; trad. Valter Graciano Martins. 1. ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009. v. 4, p. 346–350.
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1343–1348.