O Salmo 105 faz parte do Livro IV do Saltério (Salmos 90–106), um conjunto que reafirma a soberania de Deus mesmo diante da instabilidade da nação de Israel. Neste grupo, encontramos dois salmos históricos significativos: o Salmo 105 e o Salmo 106. Enquanto o Salmo 105 celebra a fidelidade de Deus ao longo da história do povo de Israel, o Salmo 106 mostra a infidelidade do povo à aliança (LOPES, 2022, p. 1125).
A autoria do Salmo 105 não é mencionada diretamente, mas os primeiros quinze versículos foram usados por Davi em 1Crônicas 16:7–22, quando a arca da aliança foi levada à tenda que ele havia preparado. Isso sugere que Davi pode ter sido o autor ou, ao menos, o organizador litúrgico do salmo.
O pano de fundo teológico é a aliança de Deus com os patriarcas — Abraão, Isaque e Jacó — e o cumprimento de Suas promessas por meio de atos poderosos, desde o êxodo até a conquista de Canaã. Como destaca Warren W. Wiersbe, “o salmo concentra-se no Deus da Aliança, que realiza seus propósitos divinos na história humana” (LOPES, 2022, p. 1125).
No Antigo Testamento, recordar é um ato teológico profundo. Esquecer as obras de Deus leva ao pecado; lembrar-se delas sustenta a fé. O Salmo 105 é, portanto, um chamado à memória da graça, da fidelidade e da ação soberana de Deus.
1. Convocação à adoração e lembrança (Sl 105:1–7)
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O salmo se inicia com um chamado vigoroso: “Dêem graças ao Senhor, proclamem o seu nome; divulguem os seus feitos entre as nações” (v. 1). A adoração aqui não é apenas contemplativa, mas missionária. O povo deve relatar as maravilhas de Deus a todos os povos, como um testemunho da Sua grandeza.
Nos versículos 3 e 4, o salmista associa glória, alegria e busca constante pela presença do Senhor. O culto é relacional, uma resposta ao caráter de Deus. A convocação à lembrança (v. 5–6) é um antídoto contra o esquecimento espiritual. Ao ler esse trecho, percebo que minha vida precisa girar em torno da memória ativa do que Deus já fez. Esquecer é o primeiro passo para a incredulidade.
2. A aliança com os patriarcas (Sl 105:8–11)
O salmista afirma que Deus “se lembra para sempre da sua aliança” (v. 8). Essa aliança é com Abraão, confirmada a Isaque e decretada a Jacó. A promessa central: a posse da terra de Canaã como herança (v. 11).
Deus é retratado como o Deus que lembra, que guarda Sua palavra e a cumpre. Segundo Hernandes Dias Lopes, “para Ele, promessa de Deus e realidade são a mesma coisa, pois vela pela sua palavra em cumpri-la” (LOPES, 2022, p. 1127).
3. Os patriarcas como forasteiros protegidos (Sl 105:12–15)
Mesmo sendo poucos e vulneráveis, os patriarcas foram protegidos por Deus. “A ninguém permitiu que os oprimisse” (v. 14). O verso 15 é forte: “Não toquem nos meus ungidos; não maltratem os meus profetas”. Isso mostra que os patriarcas, embora frágeis, eram portadores de uma missão espiritual elevada. Spurgeon afirma que “eles tinham recebido uma unção tripla: sacerdotal, profética e régia” (LOPES, 2022, p. 1128).
Essa seção me lembra que a segurança espiritual está na vocação divina, não na quantidade ou força humana.
4. José e a providência divina (Sl 105:16–22)
José é descrito como o homem enviado por Deus antes dos demais. Ele foi vendido como escravo, preso injustamente, mas no tempo certo foi exaltado. A dor foi o instrumento para preparar o caminho da salvação.
“Até cumprir-se a sua predição, e a palavra do Senhor confirmar o que dissera” (v. 19). Deus provou José por meio do sofrimento. Como cristão, vejo aqui que os tempos de dor não anulam o plano de Deus. Eles o lapidam. Spurgeon disse: “Quando Deus deseja libertar os seus prisioneiros, os reis se tornam seus carcereiros” (LOPES, 2022, p. 1130).
5. Israel no Egito: crescimento e opressão (Sl 105:23–25)
O texto destaca três realidades: a entrada de Jacó no Egito, a multiplicação do povo e a mudança do coração dos egípcios. O verso 24 diz que o povo se tornou mais forte que os seus adversários. Isso ecoa Êxodo 1:7, quando a prosperidade de Israel causa medo no novo Faraó.
A oposição egípcia foi resultado da bênção divina. Isso me lembra que o favor de Deus sobre nossa vida pode provocar rejeição — mas Ele continua no controle.
6. Moisés, Arão e as pragas (Sl 105:26–36)
O Senhor “enviou seu servo Moisés, e Arão, a quem tinha escolhido” (v. 26). Juntos, eles operaram sinais na terra de Cam (Egito). Os versículos 28–36 resumem as pragas, com foco na sua eficácia e no juízo contra os deuses egípcios. Walton explica que “as pragas são apresentadas aqui não para descrever o processo, mas para louvar o poder decisivo e versátil de Deus” (WALTON et al., 2018, p. 713–714).
Como no Salmo 78, a cronologia não é o foco. O objetivo é teológico: exaltar o Senhor como supremo sobre toda a terra.
7. O êxodo: triunfo e provisão (Sl 105:37–41)
O povo saiu do Egito “com prata e ouro, e entre as suas tribos não havia um só inválido” (v. 37). Eles foram curados, protegidos e guiados. A nuvem durante o dia e o fogo à noite são teofanias — manifestações visíveis de Deus.
Nos versículos 40 e 41, a provisão divina é detalhada: codornizes, maná e água da rocha. Isso mostra um Deus que supre integralmente — emocional, física e espiritualmente.
Ao refletir sobre isso, percebo que Deus não apenas liberta, mas acompanha. Ele não nos tira do cativeiro para nos deixar sozinhos no deserto.
8. A conquista da terra (Sl 105:42–45)
O salmo termina com a entrada em Canaã. Deus “deu-lhes as terras das nações” (v. 44), cumprindo o que prometera a Abraão (v. 42). Eles colheram o fruto do trabalho de outros, habitaram em casas que não construíram.
Mas o verso final revela o propósito de tudo isso: “para que obedecessem aos seus decretos e guardassem as suas leis” (v. 45). A graça da conquista vinha acompanhada do chamado à obediência.
Cumprimento das profecias
Embora o Salmo 105 não traga profecias diretas sobre o Messias, ele ecoa temas que se cumprem plenamente em Cristo. A aliança com Abraão se cumpre em Jesus, o verdadeiro descendente por meio de quem todas as nações seriam abençoadas (Gálatas 3:16). O Êxodo, com sua libertação e provisão, aponta para a salvação realizada por Cristo.
Em 1 Coríntios 10:4, Paulo afirma que a rocha ferida que deu água era Cristo. Ele é o pão do céu (João 6:51), a luz no deserto e o guia fiel. O salmo aponta para um Redentor que, como José, foi humilhado, provado e exaltado — não só para salvar uma nação, mas o mundo inteiro.
Significado dos nomes e simbolismos
- Abraão, Isaque e Jacó: Representam a continuidade da aliança. São os patriarcas por meio de quem Deus prometeu terra e bênção.
- Egito (terra de Cam): Lugar de opressão, mas também de provisão. Simboliza o mundo e a escravidão espiritual.
- Ungidos e profetas: Termos usados para os patriarcas, mostrando que mesmo antes da Lei escrita, eles tinham função espiritual.
- Codornizes, maná e água da rocha: Símbolos da provisão divina. Através deles, Deus mostrou ser suficiente.
- Canaã: Símbolo do descanso prometido, que em Cristo se torna a esperança da nova criação (Apocalipse 21).
Lições espirituais e aplicações práticas
- Deus cumpre tudo o que promete – Não há uma só palavra que Ele fale que caia por terra. Sua fidelidade é fundamento para nossa fé.
- A história do povo de Deus é nossa história – As vitórias e fracassos de Israel servem como espelho espiritual para nós.
- O sofrimento pode ser parte do plano – Assim como José, passamos por provas, mas Deus tem um propósito maior.
- Deus protege mesmo quando somos fracos – Os patriarcas eram poucos e vulneráveis, mas estavam guardados por Deus.
- Obediência é o alvo final da bênção – Deus nos abençoa para que andemos nos seus caminhos, não apenas para nosso conforto.
- A memória da graça sustenta a esperança – Recordar o que Deus já fez renova a fé para os desafios de hoje.
- Jesus é o novo Êxodo – Ele nos liberta da escravidão espiritual e nos conduz à Canaã celestial.
Conclusão
O Salmo 105 é uma celebração da fidelidade divina. Ele conta a história de um Deus que guia, protege, prova e cumpre. Ao ler esse salmo, sou lembrado de que minha fé não repousa em emoções momentâneas, mas em uma história sólida de redenção. Cada detalhe da jornada de Israel — desde Abraão até a entrada em Canaã — ecoa em minha própria jornada espiritual. Deus continua fiel, e seu chamado à obediência ainda ressoa.
Referências
- LOPES, Hernandes Dias. Salmos: O Livro das Canções e Orações do Povo de Deus, org. Aldo Menezes. 1. ed. São Paulo: Hagnos, 2022. v. 1 e 2, p. 1125–1136.
- WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Antigo Testamento, trad. Noemi Valéria Altoé da Silva. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 713–714.